terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Gadareno

Texto baseado no Evangelho de Marcos
5:1-14

Um grito corta o silêncio de uma pequena vila, sob os céus estrelados do Oriente. Não foi por causa do frio ou da hora avançada, que não houve viva alma que se interessasse em sair de sua casa, mas sim do profundo e irracional medo.

Há semanas, talvez meses, as noites são cortadas pelos gritos dos desafortunados, cujos corpos brutalmente mutilados são as únicas testemunhas dos terríveis acontecimentos que sobre eles recaíram.

As autoridades, pagãos invasores do solo ancestral, impõe severas restrições ao movimento, após o ocaso da luz. Mesmo assim, o rufar dos tambores e flautas não cessa nas noites em que a própra Lua teme em se mostrar.

Nas semanas que se seguem, um êxodo constante de habitantes foge, enquanto o Império envia mais forças, em uma tentativa vã de conter o pânico crescente.

Supersticiosos, os soldados observam com apreensão os últimos raios de sol. Vindos de diversas partes do mundo conhecido, cada um eleva suas preces repetitivas a quaisquer divindade que as ouça, pois novamente o ciclo se repetirá e outra vida será reclamada.

É tarde quando, pela terceira vigília, um grupo de figuras encapuzadas deixa a proteção da fortaleza, dirigindo-se em direção ao bosque local. Um dos legionários que estava de guarda, oriundo das terras da antiga Mesopotâmia, portador de um espírito inquiridor, resolve consigo seguir o misterioso grupo, procurando não ser percebido por aqueles.

Ao adentrarem no arvoredo, os ventos uivantes começam seu réquiem por aquele que não mais verá a luz. Aterrado, o legionário percebe-se perto de um círculo formado por monólitos, que iluminados por tochas, mostram contornos dançantes, movidos pelo vento oriental.

Contudo, o verdadeiro horror ainda estava para ser revelado.

No centro do círculo ritualístico, sobre uma laje de granito, uma mulher de aparência local é sacrificada, enquanto um dos participantes, portador de um ídolo blasfemo, entoa cânticos compassados, ininteligíveis aos não iniciados.

Uma voz grave parece surgir de entre as árvores. Tal voz, que não se distinguia do vento uivante, mas que tomou tamanha proporção que ensurdeceia a todos, causou, no início, estranheza aos participantes, contudo, ao aumentar cada vez mais, aquele sentimento cedeu lugar à manifestação do mais primitivo e visceral terror.

Subitamente, o legionário que, aterrorizado, observava aquele espetáculo, é tomado de sua consciência, somente despertando ao alvorecer, exclusivamente para ser posto em cadeias.

Sem compreender o que lhe acontecera, percebe que o sangue recém descoberto em suas mãos e rosto era, na verdade, de seus oficiais, que jaziam despedaçados ao chão, no interior de um círculo formado por blocos de granito, tingidos de vermelho.

Naquele mesmo dia, ao cair da noite, aquele homem despedaçou suas cadeias, como se feitas da seda do oriente. Sua escapatória da masmorra e a forma como arrombou os pesados portões da fortaleza, ainda são contadas até hoje, à roda das fogueiras dos supersticiosos, por aqueles que presenciaram tal acontecimento.