quinta-feira, 8 de março de 2012

Na Companhia dos Mortos

Dezenas de olhos vívidos observam atentamente a um homem de estatura e idade medianas, cabelos escuros e cacheados, cobertos por um discreto turbante que, como o restante da túnica, são negros, de barba bem feita e delineada, a assentar-se em uma das almofadas disponíveis no amplo aposento, cujas paredes e assoalho são recobertos por preciosas tapeçarias, e que possui a curiosa característica de acomodar a todos os presentes de forma agradável e relaxada.

O suave perfume de sândalo, que exala dos incensários providencialmente posicionados ao longo do aposento, aliado à imensa abóboda finamente trabalhada que ergue-se sobre todos em seu interior, confere ao mesmo uma aura sublime e respeitosa, própria a tão ilustre edifício.

Do lado de fora, os últimos raios de sol iluminam nuvens que distanciam no horizonte infinito, enquanto o rubror do ocaso dá lugar ao manto estrelado das terras do oriente.

De volta ao aposento, os últimos convidados terminam de se assentar enquanto os demais aguardam o início da sessão.

O homem de negro, com um aceno de sua mão fez o silêncio no aposento, sinal indicador que o início se dera.

Para aqueles que não me conhecem, disse o homem, sou Asar Abdul Bin Muqaddim Zakwan Bin Farrukh Taysir, alquimista graduado, membro do Colégio de Medicamentos e Cirurgia.

Tudo começou em minha existência, quando em tenra idade fui colocado sob os cuidados do grande Gib Iblin, que todos aqui conhecem como o grande farmaceutico desta geração. Seus unguentos, incensos medicinais e tônicos restauradores são conhecidos para além das fronteiras do mar, portanto dispensa maiores apresentações.

Fui seu aprendiz por nada menos do que quinze anos, ocasião em que aprendi tudo o que sei das artes alquímicas e medicinais, que tanto me são úteis nos dias de hoje.

Após este período, fui formalmente apresentado diante dos mais ilustres membros desta cidade como médico competente e experimentado nos mais difíceis procedimentos cirúrgicos.

Mas nada do que tinha visto ou experimentado teria me preparado para os dias de horror que vivi nas catacumbas nas terras ao norte.

Toda a minha companhia sucumbira em apenas três dias, exposta a uma terrível e desconhecida doença, nunca antes vista ou catalogada nestas terras. Acredito que a água tenha sido o fator contaminante, uma vez que não fui afetado por tal enfermidade. Graças sejam dadas pelos métodos esterelizantes e purificadores!

Sozinho, acabei por me perder nos corredores úmidos e escuros daquele local. Foram necessários dois dias para que conseguisse chegar, como que por acaso, à câmara mortuária principal.

Com pouca iluminação, tive de racionar toda a forma escassa de luz artificial à meu dispôr, forçando-me à adaptação àquela penunbra permanente.

Enquanto esperava meus olhos se acostumarem à sua nova condição, percebi alguns sons, indistintos, baixos, porém incessantes, que vinham da câmara à frente.

Verifiquei meus pertences e percebi que somente meu tônico me restava, além de um frasco de Fogo Grego e um bastão iluminador.

Sabendo que o fim da catacumba se encontrava a frente, bebi meu tônico e senti seus efeitos. Minha mente tornou-se mais dispersa, porém meus sentidos e reflexos muito mais apurados.

Quando decidi abrir a última porta inexplorada, percebi o incessante mover de formas parcialmente encobertas pela escuridão. O odor repugnante da morte e putrefação empestiava o ambiente.

Uma verdadeira horda de criaturas semi-decompostas, desprovidas de intelecto e razão, cujo único propósito era defender a valiosa relíquia de Quran, se interpunha entre mim e ela.

Naquele momento percebi que se quisesse sair vivo daquela masmorra, teria de ser o mais furtivo possível. E assim eu fui.

Esgueirando-me pelas paredes pessimamente iluminadas, cheguei a um ponto seguro onde me agachei e preparei meu último frasco.

Uma última observação e lancei o frasco no lado oposto do aposento.

Como planejado, aqueles seres foram atraídos pelo som da pequena explosão, seguida da ignição de seu líquido oleoso.

Em questão de segundos, a maior parte daquela monstruosidade blasfema se dirigiu ao local programado, permitindo-me passar por espaço desobstruído.

Corri e cheguei na base do pequeno altar que continha o objeto de minha busca: um grande rubi, vermelho como sangue, do tamanho de um coração de um touro.

A chama já estava se apagando, então decidi cortar as “formalidades” e peguei a jóia o mais rápido possível.

Para meu espanto, a mesma estava protegida.

Assim que dei meu primeiro passo com a jóia, o pequeno altar foi arremessado a alguns metros de mim, revelando abaixo a câmara mortuária do próprio Quran, que agora levantava para reclamar seu tesouro perdido.

Não é preciso dizer que, a esta altura, o fogo já se extinguira e que dezenas de seres putrefatos já vinham em minha direção.

Corri! Corri loucamente, alheio a tudo e a todos. Tropecei algumas vezes no escuro, mas consegui acender minha última fonte de luz.

Para meu desespero, estava perdido novamente no labirinto subterrâneo. Agora, para aumentar meu senso de urgência, era seguido de perto por incontáveis cadáveres, que se espremiam naqueles corredores escuros.

Por um instante consegui pensar com clareza salavadora, decidindo seguir sempre a parade da direita, pois sabia que, em algum momento, ela me guiaria até a saída.

Não sei ao certo quanto tempo levei, pois as lembranças se tornam turvas à medida que o corpo prescente o perigo iminente. Sei que em um momento fui encurralado, tendo de lutar para sobreviver.

Quando consegui sair, tive grande dificuldade em passar pela areia que estava depositada na entrada do local. Por isso, acredito que nehuma daquelas criaturas tenha saído, afinal, sem equipamentos apropriados, seria impossível escapar.

Consegui encontrar uma caravana depois de dois dias no deserto abrasador. Já estava exausto e sedento, me alimentando de escorpiões e largatos que encontrava ocasionalmente.

Tudo isto para apresentar-lhes a jóia de Quran!

Neste momento um servo aparece e retira um domo prateado que estava posto sobre uma pequena mesa circular, revelando um enorme rubi, vermelho sangue, finamente trabalhado.

Agora, meus estimados amigos, que conhecem minha história e podem ver com seus prórpios olhos a magnificência desta jóia singular, declaro o leilão aberto e fixo seu valor inicial em duas mil peças.