sábado, 5 de novembro de 2011

Onde caminham os deuses

Texto baseado em  1 Samuel 25, 2-3
I

Situado fronteiro ao território de Tiro e Sidon, o Monte Carmelo levanta-se imponente, delimitando a medida do orgulho do Grande Mar. As vagas do Mediterrâneo chocam-se violentamente contra as estruturas monolíticas da base do monte, que resolutamente insistem em invadir os domínios do oceano.

À base do monte, propriedades esparsas e distantes uma das outras se fazem notar pelo brilho lúgubre que emitem após o ocaso da luz. Vistas do cume plano da montanha, percebe-se claramente a distribuição das posses ao redor da mesma, como que a indicar algum tipo de reverência sacramental.

De fato, mesmo antes da tomada da terra, o monte já era reputado sagrado pelos ancestrais dos que hoje jazem à base do Carmelo, em túmulos profanados por séculos de dominação.

Como que resultado de eras de conflito entre mar e rochedo, a paisagem monótona de praias sem fim é subitamente interrompida por penhascos que invadem a água, como que reclamando de volta algo há muito perdido.

Em um desses pontos há uma pequena baía, cuja reentrância em forma de foice oferece uma trégua ao embate milenar entre os elementos, possibilitando que águas calmas toquem gentilmente a enseada ali formada.

Neste local, habitado muito antes de qualquer memória escrita, existe uma comunidade composta por todo tipo de seres decadentes e agoureiros, cuja influência pagã faz-se notar tanto no vestir, quanto no falar, mas principalmente nos sacrifícios oferecidos diante do mar.

Devido à influência fenícia, até mesmos crianças eram oferecidas aos deuses do céu, do mar, e do Carmelo. Contudo, após a colonização hebréia dos últimos séculos, tal costume cedeu lugar a uma forma cultual onde somente animais são oferecidos nos altares de pedra. Estes, feitos de forma anormalmente detalhada em relação ao povo que ali habitara e à época de sua criação, demonstram o emprego de ferramentas e métodos até então desconhecidos naquela região.

O primeiro altar encontra-se localizado de frente para o Grande Mar, na porção de terra da pequena baía em forma de foice, assentado sobre um piso uniforme de pedras lavradas que, ao serem observadas com mais vagar, representam um círculo em perturbadora perfeição.

O segundo altar está no cume do Carmelo, também voltado em direção ao oceano. Contudo, diferentemente do primeiro, este possui uma grande mesa sacrificial composta por um único bloco rochoso, finamente trabalhado, contando com mais de três metros de comprimento, dois de largura e um de espessura.

Tal gigantesca mesa é suportada por outro bloco menor, mas igualmente massivo. O piso também apresenta diferença para com o primeiro altar, constituindo-se claramente em forma triangular perfeita.

Há uma última diferença entre ambos os altares que, no entanto, não pode ser percebida apenas pela simples observação. O segundo altar raramente é visitado pelos que habitam ao redor do monte, uma vez que, segundo reza o credo, nele caminham os deuses.

II

Existe uma estrada simples e rudimentar que cruza parte da costa, ligando as cidades do reino aos demais povos circunvizinhos, especificamente Tiro e Sidom.

Esta estrada, em algum ponto, gera uma bifurcação que quando trafegada, leva tão somente a uma grande casa. Talvez pela posição em que ocupa entre as colinas, ou devido a um efeito da luminosidade desconhecido ao homem, possui aspecto sombrio e desolador.

A maioria daqueles que pegam este caminho logo percebem que saíram de sua rota, sem darem conta que passaram pela propriedade de Nabal, homem próspero e rico tal qual nenhum outro.

Desde a época da colonização, a região é tida por herança dos filhos de Caleb, quando este pessoalmente escolheu a parte que lhe caberia na repartição da terra prometida a seus pais. Assim sendo, grande parte do contingente hebreu daquela área pode, em algum momento, traçar sua genealogia até Caleb, e, portanto, reivindicar o solo da herança.

Este Nabal, descendente de Caleb, é possuidor de muitos bens e gado, tendo a seu dispor dezenas de servos, animais e talentos de prata e ouro. Contudo, a fonte de tal riqueza não deve ser reputada à uma herança abastada, ou ao excepcional tino comercial, mas sim a uma origem mais insidiosa.

Diferenciando-se dos demais tipos de sua região, Nabal teve por servo o sábio Josef, sendo instruído por este nos costumes e nas letras de seu povo. Por muitos anos o sábio ensinou o jovem Nabal, inclusive a cerca dos conhecimentos mais obscuros das artes divinatórias, até que veio a falecer, sob circunstâncias misteriosas, após o aparecimento do livro.

Certa noite, após severa tormenta ter assolado a região, um pequeno grupo de aldeões foi à casa de Nabal, portando uma peculiar caixa de madeira, apodrecida por anos de contato com a água.

Argumentando que esta possuía o selo de sua casa, a deixaram sem demora, apenas revelando, quando inquiridos, que a caixa aparecera após a tormenta, jogada na areia da praia, como se vinda arrastada pelo mar.

Ao abrir a caixa, Nabal percebeu que o conteúdo em seu interior estava envolto em anormalmente grossa camada de cera, totalmente selado, o que pode ter garantido sua conservação.

Josef estava junto quando a cera foi removida e seu conteúdo revelado, pausando por um tempo até que seu rosto mudou da curiosidade ao espanto, quando um grande livro foi revelado.

Meu senhor, disse ele, reconheço este tomo e peço que meu senhor se livre dele o quanto antes! A tragédia acompanha estas páginas! Jogue-o ao fogo, antes que pior mal se faça a esta casa!

Sua capa era feita de couro, mas, talvez devido ao tempo, estava enegrecida como piche, suas páginas, feitas de papiro finamente trabalhado, continham escritos em diversos idiomas, além de desenhos e ilustrações variadas, ora retratando figuras de homens e animais, ora figuras híbridas, cujas formas somente poderiam ter sido concebidas por alguma mente doentia.

Nabal permaneceu observando as várias páginas enquanto escutava, despreocupadamente, o velho Josef predizer maldições e calamidades, até que o ouviu referir-se a seu pai e as circunstâncias de seu desaparecimento.

Que tem meu pai?, perguntou Nabal enquanto fechava o estranho tomo.

Seu pai, meu senhor, desapareceu há muito, quando o senhor ainda era infante. Ele o deixara sob meus cuidados, enquanto viajara até a terra de Cam, mais precisamente à cidade de Mênphis. Ele dizia ter encontrado evidências da existência de um certo código arcano. Contudo, passados meses de jornada, a embarcação fenícia em que estava naufragou nestas águas, após uma noite tempestuosa como esta. Somente dois sobreviveram a este desastre. Por isso lhe peço, meu senhor, livre-se desta maldição! Seu conteúdo são apenas sombras.

Não, disse Nabal para tristeza de Josef, se meu pai perdeu sua vida em busca disto, ele agora é minha herança.

O velho Josef era o único servo na casa de Nabal, que estava em grave declínio após anos de penúria e privações.

Sentindo-se na obrigação de guardar seu senhor, Josef esperou que ele adormecesse, cuidadosamente recolheu o tomo e, pondo sua capa, saiu noite afora, para nunca mais ser visto com vida.

Pela manhã, Nabal foi acordado por um incessante bater em sua porta. Eram aldeões. Contudo, estavam visivelmente aterrorizados, portando em suas mãos trêmulas o tomo negro, agora levemente manchado por substância avermelhada.

Nós ouvimos os gritos antes do amanhecer!, bradava um dos aldeões, a gente achou que ele tinha ficado maluco, mas quando ele começou a gritar com mais força a gente ficou com medo. Somente a velha Lia saiu para ver o que estava acontecendo, e agora ela está de cama, delirando! Ficou louca também!

Onde está Josef?, perguntou Nabal, logo após percebendo a futilidade de sua pergunta. Os aldeões se entreolharam de modo suspeito. Estava claro que ele havia tentado destruir o tomo. Contudo, algo o destruíra primeiro.

Onde está o corpo dele?, insistiu Nabal.

A resposta demorou a vir, enquanto alguns dos aldeões se retorciam e tampavam seus rostos devido ao horror pelo que passaram.

O corpo, respondeu um deles, não existe mais. Está todo espalhado pela aldeia! Tem gente tentando recolher os pedaços antes que os abutres cheguem!

As crianças da Sara, retorquiu outro, ficaram doidas quando encontraram a cabeça do pobre homem na frente da casa! Deuses, aqueles olhos!

III

Foram necessárias algumas horas de trabalho para recuperarem todos os restos mortais de Josef. Após algum tempo, os abutres chegaram e revelaram os que faltavam aos aldeões, que aterrorizados, providenciaram um esquife e prontamente sepultaram aquele homem.

Aquele dia passou lento e sufocante para os que habitavam à base do Carmelo, terminando em uma tarde serena. Contudo, o espírito dos aldeões estava sobremodo inquieto. A velha Lia ainda delirava a respeito do que matara Josef, enquanto em estado febril. Aqueles que a ouviam não sabiam se deveriam considerar o que ouviam, ou apenas reputá-la como lunática. O fato, no entanto, não poderia ser negado. Josef não apenas fora morto, mas impiedosamente esquartejado por algo que ainda estava do lado de fora das casas.

Eu vi! Eu vi!, berrava a velha Lia enquanto outras mulheres a tentavam acalmar. Vocês não entendem! Eu acordei com o brilho da tocha dele. Achei estranho alguém sair aquela hora... quando eu decidi ver quem er... oh deuses! Aquilo era enorme! Saiu do mar na frente do altar e segurou Josef com apenas uma mão... nós vamos morrer!

Alguns dos anciões da vila, que estavam ouvindo as palavras de Lia, decidiram sair e se reunir em um local melhor, onde poderiam discutir o que aconteceu.

A despeito do que acontecera a Josef, os anciãos decidiram por permanecerem em suas casas, uma vez que em nenhuma outra ocasião tal fato ocorrera. Assim sendo, consideraram tão somente que todos se recolhessem às suas casas após o ocaso.

A mente de Nabal, contudo, permanecia ligada ao significado daquele livro e a que tipo de poder conteria em suas páginas.

IV

A noite avançava pela madrugada e Nabal, agora sozinho, sentava-se junto à lareira crepitante. Ele ainda não se atrevera a olhar novamente o velho tomo, lembrando das últimas palavras que ouvira de Josef, acerca de maldições e sombras nele contidas, mas olhava-o fixamente sobre uma velha mesa de madeira.

Reunindo coragem, levantou-se e segurando o livro sentiu-o pesado, como se o peso dos conhecimentos milenares ali contidos fosse real.

Ao abri-lo, notou uma folha desgarrada que, pela sua aparência e caligrafia, deduziu ser algo não pertencente ao conjunto daquela obra.

Detendo-se com mais calma, Nabal percebeu que se tratavam de anotações em seu próprio alfabeto, diferentemente do restante do livro, e que ao fim das mesmas estava o selo de sua casa. Aquilo fora escrito por seu pai.

Analisando-o com mais vagar, Nabal percebeu que aquele enxerto seria crucial para o correto entendimento daquele tomo, uma vez que nele estava contido uma espécie de fórmula arcana capaz de elucidar seu conteúdo.

Na verdade tratava-se de uma espécie de preparado místico, composto por ervas aromáticas especiais, água do mar e gotas de seu próprio sangue, que quando devidamente manufaturado, abriria a percepção do usuário ao mundo como ele realmente é.

Alguns dias se passaram até que Nabal conseguiu reunir todos os ingredientes necessários à feitura do preparado arcano. Alguns destes, por sorte, estavam sendo transportados por uma caravana de mercadores que passava nas proximidades do Carmelo na ocasião.

Quando a noite chegou, Nabal separou todos os ingredientes em sua grande mesa, dispondo-os de forma que ficassem sempre à mão. Um pequeno caldeirão no centro da mesa retangular, mas próximo a um dos lados onde Nabal estava, com o tomo à direita e, partindo deste, vários ingredientes distribuídos em forma de semicírculo, que contornando o caldeirão, davam ar de simetria à mesa.

Um por um os elementos foram inseridos na ordem que o fragmento ditava. Por fim, Nabal perfurou um de seus dedos e fez gotejar algumas gotas de seu próprio sangue naquela mistura. Finalmente estava pronta.

Nabal então tomou o caldeirão e, pondo-o sobre o fogo da lareira, esperou até que seu conteúdo aquecesse e começasse a evaporar.

Após alguns minutos, Nabal viu começar a subir um vapor espectral, branco e denso. No início era apenas um filete, porém tornou-se maior em volume, até que copiosamente preencheu o aposento com um odor nunca antes sentido.

Sentindo-se entorpecido, seus olhos formigantes começaram a ser abertos para a realidade do mundo como ele realmente o é.

O que pareciam ser sombras geradas pela luz da lareira, logo revelaram-se seres fantasmagóricos, desprovidos de matéria e substância, mas presentes e observadores, disformes mas assustadoramente humanoides, calados mas sussurrando poder.

Ao se deter no tomo, viu-o com um leve brilho rubro que emanava de seus escritos. Ao contemplá-lo logo percebeu que os símbolos e figuras antes desconhecidos, tomaram uma clareza tal que o livro poderia ser lido e entendido totalmente em seus significados mais obscuros.

Finalmente o conhecimento das eras foi seu.

V

Nabal não foi visto por semanas pelo povo da pequena vila, após a morte de Josef. Contudo, mais e mais caravanas passavam por aquela localidade, oferecendo como única explicação um súbito e irresistível desejo de sacrificar e adorar aos deuses.

Na primeira noite de Lua Nova, exatamente um mês após a morte de seu servo, houve grande desentendimento entre os habitantes locais e os mercadores que ali se encontravam, uma vez que diversos animais haviam desaparecido do aprisco dos aldeões, recaindo a culpa sobre os mercadores que ali estavam. Nabal, contudo, sabia exatamente quem surrupiara os animais: ele próprio.

A noite avançava lentamente no Carmelo enquanto uma figura encapuzada deixava a propriedade de Nabal, trazendo consigo diversos animais cuidadosamente amarrados em fila, rumando em direção à encosta mais suave do monte sagrado.

Tendo apenas aqueles animais por testemunha, Nabal chegou ao cume do rochedo, parando somente ao se deparar com a ancestral mesa sacrificial que, pela suas proporções colossais, somente poderia ter sido utilizada por algo que transcendesse a humanidade, tanto em volume quanto em antiguidade.

Após prender todos os animais, Nabal, sacando uma adaga sinuosa, começou a sacrificá-los, enquanto entoava cânticos com nomes daqueles que não deveriam ser lembrados.

Yamm, decaído do monte sagrado Sappan, as estrelas chamam-te Lotan, Rahab e Tannin, o abismo primordial, a serpente do mar, o grande dragão de sete vozes.
Leviathan.

Ao terminar o último sacrifício, já exausto, Nabal pôde sentir o vento até então implacável cessar por completo.

Já pressentindo que algo estava para ocorrer, percorre a escuridão com seu olhar, até que, ao observar o mar, percebe os clarões que prenunciam o aproximar-se de grande tormenta.

Seus olhos se fixam em uma grande nuvem que parece tocar o mar ao longe, intrigando-o principalmente porque aparenta mover-se de forma independente do vento, sendo tal observação somente possível quando raios iluminam a escuridão da noite.

Por alguns instantes houve silêncio absoluto, até que um grito abafado pelas mãos postas sobre os lábios, quebra aquela monotonia.

Ao longe, um clarão solitário revela uma forma colossal, de proporções absurdas e impossíveis na natureza, movendo-se rapidamente no mar sem fim. Ao se aproximar da costa, aquilo começou a sair da linha da água, revelando a terrível realidade da condição humana.

Nabal, horrorizado, debruça-se sobre a gigantesca mesa cerimonial, enquanto um número incontável de apêndices grotescos e tentaculares, exerce influência esmagadora sobre sua mente.

Quando aquilo finalmente chegou ao Carmelo, percebendo a presença de Nabal, esticou grande par de asas e, subitamente, cravou suas enormes garras nas laterais do monte, liberando rugido tão grande que fez toda aquela região tremer.

Nabal, recompondo-se e recordando o que dizia o tomo, pôs-se de joelhos com o rosto em terra, porque sabia que sua vida dependeria disso.

Após instantes ouvindo aquela respiração grave e poderosa, sentiu uma leve vibração perto de si, ao que se seguiu o ruído abafado de dezenas de ossos sendo triturados. Ele sabia que o sacrifício fora aceito.

Levantando-se, viu aquilo o observando com dezenas de olhos, sem qualquer tipo de simetria ou ordem natural, enquanto poderosa mandíbula terminava o sacrifício.

Lembrando-se novamente do tomo, Nabal procurou compatibilizar sua respiração com a daquele ser, enquanto acendia um braseiro já previamente preparado.

A fumaça que passou a subir tinha a propriedade de limpar a mente do usuário, colocando-o de forma mais propensa a receber estímulos externos.

Ao estarem em sintonia, foi dado a Nabal escolher o objeto de seu desejo e a saber o preço que deveria pagar. A escolha foi simples, mas o preço terrível.

Um a um, todos os habitantes foram mortos, devorados perante Nabal, que os ofereceu como sua parte do sacrifício exigido.

Os gritos daquela gente ecoaram por muitos dias, na mente de Nabal, após aquela noite. Suas faces aterrorizadas, seus gemidos lamuriosos, tiveram efeito devastador sobre ele, tanto física quanto espiritualmente.

Todo o horror indescritível pelo qual foi obrigado a passar, infligiu em seu corpo o peso de vinte anos. Sua alma, contudo, sofreu o pior dano. Se havia algum resquício de bondade e decência em seu coração, estes foram substituídos pela brutalidade, indiferença e extrema avareza.

Como recompensa, ao raiar do sol, Nabal já era um dos homens mais ricos do oriente, uma vez que no lugar dos casebres dos aldeões, jaziam diversas embarcações, cujas cargas reluzentes contrastavam com o estado decrépito daquelas, como que retiradas dos domínios do mar.

VI

Dez anos se passaram desde aquela noite. Nabal, já contando com certa idade, prosperou grandemente ajuntando ainda mais bens, sem que viva alma o pudesse acusar do morticínio por ele desencadeado.

Os mercadores que passavam por aquela região, seduzidos pelo reluzente ouro, de bom grado proveram servos e servas que trabalharam toda a região ao redor do Carmelo, não apenas plantando vides, mas pastoreando toda espécie de gado miúdo. Com o tempo, Nabal tornou-se grande fornecedor de lã, vinho e carne, sem temer nada nem ninguém.

Certo dia, viu bela escrava sendo oferecida por um dos mercadores. Seu nome era Abigail.

Pagando seu preço, a tomou por esposa, mas sua mente ainda estava ligada a seus bens e poder, passando a expô-la mais como um belo pássaro engaiolado do que como sua mulher.

Abigail, por sua vez, passou a cuidar de suas tarefas domésticas, auxiliada por grande número de servas, garantindo que à mesa de seu marido nunca faltasse vinho e carnes em abundância.

Tudo parecia ir bem a Nabal, até que, certo dia, um de seus servos voltou com a notícia de que determinado refugiado estava às portas de sua terra, acompanhado por grande multidão, e que solicitava comida, bebida e local para pouso. Seu nome era Davi, e era fugitivo do Rei Saul.

Nabal, ouvindo seu servo, muito se revoltou com a petulância deste foragido. Pensava consigo em tudo o que tinha e de como tal homem poderia sequer pensar em ter algo seu.

Após algum tempo, mandou seu servo de volta com a difícil missão de negar provisões a aquele que seria, no futuro, Rei sobre todos os filhos de Israel. Abigail, que diligentemente trabalhava perto de seu marido, ouviu tudo o que disse e temeu pelo pior.

Ao saber da negação, Davi muito se enfureceu contra Nabal, decidindo fazer tamanho mal que ninguém em sua casa sobreviveria.

Já tinha reunido seus homens e os aparelhado para a peleja quando, para sua surpresa, viu várias pessoas descendo colina próxima, cada uma portanto diversos mantimentos em suas mãos, afora dezenas de jumentos carregados.

O primeiro a chegar, prostrando-se aos pés de Davi, lhe informou que sua senhora, Abigail, enviara todos aqueles suprimentos e que lamentava profundamente o comportamento de seu marido.

Davi, retornando à bainha sua lâmina, louvou a seu Deus pela atitude sensata de Abigail, porque estavam para matar a todos da casa de Nabal.

Dispensando o servo, passou a distribuir os bens para os demais que o acompanhavam, trezentas almas, somente contando os homens aptos à guerra.

Ao retornar à casa, o servo procurou Abigail e lhe contou tudo quanto Davi o fizera saber, pelo que sentiu-se aliviada do terror que fora poupada sua casa, mal sabendo ela que o juízo já estava determinado contra Nabal.

Ao cair da noite, chegando de fiscalizar seus campos, Nabal sentou-se e preparou grande mesa para si, um banquete digno de um rei, mas apenas para si mesmo.

Solitariamente comeu, bebeu e se fartou, até que sua esposa o fizera saber de tudo quanto fez e das palavras de Davi acerca sobre o mal intentado sobre sua casa, e de como ela pôde refrear sua ira.

Ao terminar de ouvir sua esposa, Nabal sentiu um grande peso no peito, não conseguindo esboçar qualquer tipo de reação às suas palavras, à medida que o aposento ia se enchendo de sombras somente vistas por ele.

Ninguém poderia saber!, pensava Nabal, mas sua riqueza e existência tinham como condição nunca dar livremente qualquer bem de sua imensa fortuna.

Tudo agora acabaria pelo zelo inocente de sua esposa.

Dez longos dias se passaram, enquanto Nabal, impossibilitado de sequer se alimentar, definhava lentamente sobre sua cama finamente trabalhada, enquanto era sobrenaturalmente forçado a relembrar o sofrimento daqueles que matou.

Tudo isto sob os olhares de seres espectrais que, silenciosamente, observavam a miséria humana, às bases do Carmelo, o monte sagrado onde caminham os deuses.

sábado, 24 de setembro de 2011

O Bezerro de Ouro


Texto baseado em Êxodo

 32:1

O vento do deserto sopra ruidosamente à medida que o Sol se põe, fazendo-se ouvir por toda a planície à base do Sinai. As tendas de milhares de milhares são agitadas violentamente, como se prestes a serem arrancadas por gigantesca mão invisível.

O povo encontra-se inquieto, uma vez que o Príncipe do Egito subiu ao monte do deus de seus pais e não retornou, mesmo após uma Lua. Enquanto isso, o monte inteiro fumega e arde em seu cume com tamanha intensidade, que seu brilho rubro é refletido nas densas nuvens que pairam imóveis sobre o rochedo, tornando a atmosfera tensa e aterradora.

Tendo permanecido na terra de Gósen por quatrocentos anos, o povo adotou os costumes idólatras de seus senhores, costumes estes que são resolutos em permanecer em suas mentes e corações.

Alguns dos anciãos dos hebreus, grupo seleto que assistia junto aos sacerdotes egípcios, vendo que o Príncipe tardava em descer da montanha, tomaram-no por morto, supondo que a idade o tivesse vencido.

Decidiram então, em segredo, aplicar os conhecimentos místicos adquiridos durante a servidão, para suplicar aos deuses da terra sua clemência, pois se reputavam sozinhos.

Estavam enganados.

Os cânticos invocatórios começaram após a segunda vigília, ritmados, envolventes, profanos.

Mehet-uret! Mehet-uret!

Assim gritavam aqueles que tão cedo se desviaram daquele que lhes fez passar pelo mar, a pé enxuto, que operou sinais e prodígios nunca antes visto em toda a terra.

Mehet-uret! Mehet-uret!

Os cânticos prosseguiram por toda a noite. Sacrifícios eram trazidos e imolados sobre um altar de pedras não-lapidadas. O sangue inundava o chão enquanto mais animais eram arrastados e esquartejados, ao som da invocação blasfema.

Mehet-uret! Mehet-uret!

Subitamente, o que presidia o ritual fez gesto amplo com as mãos e, jogando-se por terra, em postura de submissão, declarou que haviam sido atendidos.

Vendo isto, os demais imitaram seu comportamento, enquanto aguardavam o desfecho da cerimônia.

Os segundos pareceram horas, até que um leve tremor se fez sentir. Alguns de mais débil compostura puseram-se a chorar, talvez realizando o mal que teriam invocado.

Ao fim do tremor, uma respiração pesada e profunda tornou-se manifesta aqueles homens. Ao procurarem sua origem, perceberam uma figura negra, mais alta que um ser humano comum, vestida de pesados mantos.

Sua face estava encoberta por um longo capuz, mas suas mãos, horrendas, deformadas, ameaçadoras, possuíam apenas quatro dedos que terminavam em longas protuberâncias pontiagudas.

Ao se mover, todos foram capazes de perceber que não possuía pés no sentido ordinário daquilo que é concebido como tal, sendo antes apenas o complemento grotesco e maldito de algo, cuja mera existência profana a realidade.

Vendo que dirigia-se em sua direção, aquele que realizava o rito levantou-se e, aterrorizado, suplicou pela ajuda daquele que havia atendido ao ritual.

Após certo tempo, pode-se ouvir um som baixo como um sussurro, vindo daquela figura espectral, o que fez com que a face do homem se tornasse mais confiante e tranqüila.

Ao cessarem os sons, o homem se reclinou reverentemente ao chão, atitude que todos repetiram. Ao levantarem os olhos, perceberam que estavam novamente a sós.

Todos ficaram aterrados com a aparição, mas guiados pelo que se comunicara com a entidade, foram instruídos a fundir uma imagem em sua honra.

Finalmente amanhecera.

Ao retornarem ao arraial, aqueles anciãos, a fina estirpe dos cativos, corromperam grande parte do povo com as promessas de farta comida e provisão, conquanto forjassem para si um ídolo, um bezerro de ouro.

Com a oferta de alimentos finos e iguarias, o povo que fora escolhido dentre as nações, separados pela promessa feita a seus antepassados, novamente se corrompera e desviara de seu caminho.

Naquela mesma noite, enquanto os eleitos se revolvem na imundícia de seu engano, o Príncipe observa da base do santo monte, enquanto segura as tábuas do mandamento de santidade, escritas pela própria mão do Deus de seus antepassados.

sábado, 3 de setembro de 2011

Terra de Faraós

Texto baseado em Êxodo
12:23

Nunca me esquecerei daquela noite, conta Ahmed antes de sorver demoradamente metade de seu vinho. Os olhares dos supersticiosos se entrecruzam, esperando como que famintos pelo alimento prestes a ser entregue.

Hoje, continua, sou avançado em dias e possuo mais rugas do que qualquer um dos presentes, mas estes olhos viram coisas que fariam a até mesmo ao mais intrépido e destemido, desejar a morte.

Do lado de fora da taverna mal cuidada, o vento sopra ruidosamente, forçando as dobradiças das pesadas janelas de madeira, ao passo que somente o crepitar do elemento devorador se faz ouvir dentro da construção, nos momentos em que Ahmed pausa para saborear mais um gole de vinho.

Tudo aconteceu quando aquele que fora retirado do Nilo retornou à terra. Todos aqui já ouviram as histórias dos pais de seus pais, sobre como os escravos se rebelaram e partiram em direção ao deserto abrasador, e também de como as trevas dominaram o dia. É tudo mentira, vocês poderiam dizer, mas lhes garanto que minha história é real, tão real que carrego isto comigo sempre aonde eu vou.

Neste momento, Ahmed levanta-se vagarosamente de seu assento e mostra uma volumosa bolsa feita de couro, cujo conteúdo, pelo som que emite ao ser movimentado, presume-se ser líquido.

Isto meus caros, é o motivo de hoje poder estar diante de vocês com vida. Duvidam? Pois bem, ouçam-me atentamente e julguem por si mesmos se a história de minha vida será fantástica demais. Na verdade, Ahmed senta-se vagarosamente em sua cadeira enquanto prende seu olhar na lareira ardente, minha vida tem sido uma constante fuga do horror.

Quando era jovem, me enamorei por uma bela escrava. Nós costumávamos nos encontrar às escondidas e já havíamos decidido nos unir, quando o Príncipe retornou. Tudo mudou desde então. Não podia mais encontrá-la porque sua família falava no fim da escravidão. Por dias não nos vimos.

Até aquela noite.

Os escravos estavam por demais agitados durante o dia. Falavam e corriam enquanto guardavam seus pertences. Muitos animais foram mortos naquele dia. Seus gritos eram ouvidos em toda a região, terríveis... abomináveis.

Ao cair da noite, todos os escravos se recolheram em suas casas, e um silêncio sepulcral cobriu a terra. Nem mesmo os cães latiram por toda a noite.

Quando a lua atingiu seu ápice, os gritos começaram. Mas não eram os gritos dos sacrifícios dos escravos. Vindos das casas dos artesãos, dos oleiros, dos guardas, dos sacerdotes e até mesmo da casa do próprio Faraó, o horror se fez ouvir por todo o Egito.

Oh deuses antigos! Aquela noite nunca mais passaria! Nunca mais veríamos o disco solar! Estávamos sós.

Aterrorizado com todo aquele espetáculo caótico e terrível, decidi sair de casa e ver se minha amada estava bem. Tinha de protegê-la a todo o custo, custasse o que custasse!

Corri resolutamente através das vielas estreitas. Pessoas jaziam caídas ao chão, suas faces terrivelmente deformadas pelo terror. Somente a Lua iluminava o caminho, até que finalmente cheguei a meu destino.

A sua casa era pequena como a de todo o escravo, mas notei que nos umbrais havia algo manchado, como se fora pintado de forma descuidada.

Bati à porta freneticamente. Gritei por seu nome. Escutei passos e logo depois a porta se abriu, revelando várias pessoas dentro do aposento mal iluminado. Todas estavam vestidas como se para empreender longa jornada. Cajados à mão, sandálias nos pés, à roda de uma mesa.

Ela estava lá. Ao me ver, correu ao meu encontro e me disse que esta era a última vez que nos veríamos. Disse também que ao amanhecer, o Deus hebreu os retiraria do cativeiro, e que os levaria à terra de seus pais.

Ao se despedir de mim, deu-me uma bolsa parecida como esta que lhes mostrei, recomendando-me que ao sinal de perigo, despejasse o conteúdo sobre mim. Foi a última vez que a vi.

Triste com tal despedida, havia me esquecido de tudo e todos à volta, até que um bramido descomunal me fez voltar à realidade. Foi então que eu o vi.

Aquilo se movia vagarosamente, mas de tamanho absurdo e negro como piche. Sua forma era como se vinda do pesadelo de um homicida. Sua respiração era pesada e dificultosa, expelindo um vapor espesso a cada baforada.

Fiquei estático. Paralisado. O medo tomara conta de mim. Minha única reação foi ficar imóvel, enquanto via aquilo segurar um homem com quase o dobro de minha altura e rasgá-lo ao meio, como se feito de papiro.

Foi então que aquilo virou-se e percebeu minha presença, movendo-se com agilidade antes não demonstrada, em minha direção.

Minha mão ainda segurava a bolsa que me fora entregue. Agindo como que por extinto, abri-a e despejei seu conteúdo viscoso sobre minha cabeça, enquanto observava a aproximação daquela encarnação da fúria primitiva.

Lembro-me, por fim, somente de sentir o hálito congelante daquilo, quando minha consciência me deixou. Acordei somente no dia seguinte, vendo-me coberto com sangue. Não, não era meu, mas sim o do sacrifício dos hebreus. O último presente de minha amada: uma bolsa com sangue. Por algum modo, os escravos sabiam que o sangue os protegeria daquilo.

Por que carrego isto comigo? Descobri naquele dia que eu sou o único primogênito vivo daquela geração dos filhos do Egito, e que desde então eu seria caçado até o fim de meus dias. Por isso carrego esta bolsa, cheia do sangue de cordeiro, bem amarrada para que não se perca uma só gota do líquido que me dá a vida.

Bem, meus amigos, esta é a história do último primogênito do Egito. Paguem suas bebidas e tomem seu rumo, pois a noite avança e o trabalho será árduo ao amanhecer.

Os homens saíram um por um, sem saber que esta era a última vez que o velho Ahmed seria visto.

Ao chegarem à taverna na parte da manhã, a encontraram destrancada, com cadeiras e mesas despedaçadas ao chão, além de uma bolsa feita de couro, cheia do sangue de cordeiros, não aberta por estar por demais amarrada.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Gadareno

Texto baseado no Evangelho de Marcos
5:1-14

Um grito corta o silêncio de uma pequena vila, sob os céus estrelados do Oriente. Não foi por causa do frio ou da hora avançada, que não houve viva alma que se interessasse em sair de sua casa, mas sim do profundo e irracional medo.

Há semanas, talvez meses, as noites são cortadas pelos gritos dos desafortunados, cujos corpos brutalmente mutilados são as únicas testemunhas dos terríveis acontecimentos que sobre eles recaíram.

As autoridades, pagãos invasores do solo ancestral, impõe severas restrições ao movimento, após o ocaso da luz. Mesmo assim, o rufar dos tambores e flautas não cessa nas noites em que a própra Lua teme em se mostrar.

Nas semanas que se seguem, um êxodo constante de habitantes foge, enquanto o Império envia mais forças, em uma tentativa vã de conter o pânico crescente.

Supersticiosos, os soldados observam com apreensão os últimos raios de sol. Vindos de diversas partes do mundo conhecido, cada um eleva suas preces repetitivas a quaisquer divindade que as ouça, pois novamente o ciclo se repetirá e outra vida será reclamada.

É tarde quando, pela terceira vigília, um grupo de figuras encapuzadas deixa a proteção da fortaleza, dirigindo-se em direção ao bosque local. Um dos legionários que estava de guarda, oriundo das terras da antiga Mesopotâmia, portador de um espírito inquiridor, resolve consigo seguir o misterioso grupo, procurando não ser percebido por aqueles.

Ao adentrarem no arvoredo, os ventos uivantes começam seu réquiem por aquele que não mais verá a luz. Aterrado, o legionário percebe-se perto de um círculo formado por monólitos, que iluminados por tochas, mostram contornos dançantes, movidos pelo vento oriental.

Contudo, o verdadeiro horror ainda estava para ser revelado.

No centro do círculo ritualístico, sobre uma laje de granito, uma mulher de aparência local é sacrificada, enquanto um dos participantes, portador de um ídolo blasfemo, entoa cânticos compassados, ininteligíveis aos não iniciados.

Uma voz grave parece surgir de entre as árvores. Tal voz, que não se distinguia do vento uivante, mas que tomou tamanha proporção que ensurdeceia a todos, causou, no início, estranheza aos participantes, contudo, ao aumentar cada vez mais, aquele sentimento cedeu lugar à manifestação do mais primitivo e visceral terror.

Subitamente, o legionário que, aterrorizado, observava aquele espetáculo, é tomado de sua consciência, somente despertando ao alvorecer, exclusivamente para ser posto em cadeias.

Sem compreender o que lhe acontecera, percebe que o sangue recém descoberto em suas mãos e rosto era, na verdade, de seus oficiais, que jaziam despedaçados ao chão, no interior de um círculo formado por blocos de granito, tingidos de vermelho.

Naquele mesmo dia, ao cair da noite, aquele homem despedaçou suas cadeias, como se feitas da seda do oriente. Sua escapatória da masmorra e a forma como arrombou os pesados portões da fortaleza, ainda são contadas até hoje, à roda das fogueiras dos supersticiosos, por aqueles que presenciaram tal acontecimento.