sábado, 3 de setembro de 2011

Terra de Faraós

Texto baseado em Êxodo
12:23

Nunca me esquecerei daquela noite, conta Ahmed antes de sorver demoradamente metade de seu vinho. Os olhares dos supersticiosos se entrecruzam, esperando como que famintos pelo alimento prestes a ser entregue.

Hoje, continua, sou avançado em dias e possuo mais rugas do que qualquer um dos presentes, mas estes olhos viram coisas que fariam a até mesmo ao mais intrépido e destemido, desejar a morte.

Do lado de fora da taverna mal cuidada, o vento sopra ruidosamente, forçando as dobradiças das pesadas janelas de madeira, ao passo que somente o crepitar do elemento devorador se faz ouvir dentro da construção, nos momentos em que Ahmed pausa para saborear mais um gole de vinho.

Tudo aconteceu quando aquele que fora retirado do Nilo retornou à terra. Todos aqui já ouviram as histórias dos pais de seus pais, sobre como os escravos se rebelaram e partiram em direção ao deserto abrasador, e também de como as trevas dominaram o dia. É tudo mentira, vocês poderiam dizer, mas lhes garanto que minha história é real, tão real que carrego isto comigo sempre aonde eu vou.

Neste momento, Ahmed levanta-se vagarosamente de seu assento e mostra uma volumosa bolsa feita de couro, cujo conteúdo, pelo som que emite ao ser movimentado, presume-se ser líquido.

Isto meus caros, é o motivo de hoje poder estar diante de vocês com vida. Duvidam? Pois bem, ouçam-me atentamente e julguem por si mesmos se a história de minha vida será fantástica demais. Na verdade, Ahmed senta-se vagarosamente em sua cadeira enquanto prende seu olhar na lareira ardente, minha vida tem sido uma constante fuga do horror.

Quando era jovem, me enamorei por uma bela escrava. Nós costumávamos nos encontrar às escondidas e já havíamos decidido nos unir, quando o Príncipe retornou. Tudo mudou desde então. Não podia mais encontrá-la porque sua família falava no fim da escravidão. Por dias não nos vimos.

Até aquela noite.

Os escravos estavam por demais agitados durante o dia. Falavam e corriam enquanto guardavam seus pertences. Muitos animais foram mortos naquele dia. Seus gritos eram ouvidos em toda a região, terríveis... abomináveis.

Ao cair da noite, todos os escravos se recolheram em suas casas, e um silêncio sepulcral cobriu a terra. Nem mesmo os cães latiram por toda a noite.

Quando a lua atingiu seu ápice, os gritos começaram. Mas não eram os gritos dos sacrifícios dos escravos. Vindos das casas dos artesãos, dos oleiros, dos guardas, dos sacerdotes e até mesmo da casa do próprio Faraó, o horror se fez ouvir por todo o Egito.

Oh deuses antigos! Aquela noite nunca mais passaria! Nunca mais veríamos o disco solar! Estávamos sós.

Aterrorizado com todo aquele espetáculo caótico e terrível, decidi sair de casa e ver se minha amada estava bem. Tinha de protegê-la a todo o custo, custasse o que custasse!

Corri resolutamente através das vielas estreitas. Pessoas jaziam caídas ao chão, suas faces terrivelmente deformadas pelo terror. Somente a Lua iluminava o caminho, até que finalmente cheguei a meu destino.

A sua casa era pequena como a de todo o escravo, mas notei que nos umbrais havia algo manchado, como se fora pintado de forma descuidada.

Bati à porta freneticamente. Gritei por seu nome. Escutei passos e logo depois a porta se abriu, revelando várias pessoas dentro do aposento mal iluminado. Todas estavam vestidas como se para empreender longa jornada. Cajados à mão, sandálias nos pés, à roda de uma mesa.

Ela estava lá. Ao me ver, correu ao meu encontro e me disse que esta era a última vez que nos veríamos. Disse também que ao amanhecer, o Deus hebreu os retiraria do cativeiro, e que os levaria à terra de seus pais.

Ao se despedir de mim, deu-me uma bolsa parecida como esta que lhes mostrei, recomendando-me que ao sinal de perigo, despejasse o conteúdo sobre mim. Foi a última vez que a vi.

Triste com tal despedida, havia me esquecido de tudo e todos à volta, até que um bramido descomunal me fez voltar à realidade. Foi então que eu o vi.

Aquilo se movia vagarosamente, mas de tamanho absurdo e negro como piche. Sua forma era como se vinda do pesadelo de um homicida. Sua respiração era pesada e dificultosa, expelindo um vapor espesso a cada baforada.

Fiquei estático. Paralisado. O medo tomara conta de mim. Minha única reação foi ficar imóvel, enquanto via aquilo segurar um homem com quase o dobro de minha altura e rasgá-lo ao meio, como se feito de papiro.

Foi então que aquilo virou-se e percebeu minha presença, movendo-se com agilidade antes não demonstrada, em minha direção.

Minha mão ainda segurava a bolsa que me fora entregue. Agindo como que por extinto, abri-a e despejei seu conteúdo viscoso sobre minha cabeça, enquanto observava a aproximação daquela encarnação da fúria primitiva.

Lembro-me, por fim, somente de sentir o hálito congelante daquilo, quando minha consciência me deixou. Acordei somente no dia seguinte, vendo-me coberto com sangue. Não, não era meu, mas sim o do sacrifício dos hebreus. O último presente de minha amada: uma bolsa com sangue. Por algum modo, os escravos sabiam que o sangue os protegeria daquilo.

Por que carrego isto comigo? Descobri naquele dia que eu sou o único primogênito vivo daquela geração dos filhos do Egito, e que desde então eu seria caçado até o fim de meus dias. Por isso carrego esta bolsa, cheia do sangue de cordeiro, bem amarrada para que não se perca uma só gota do líquido que me dá a vida.

Bem, meus amigos, esta é a história do último primogênito do Egito. Paguem suas bebidas e tomem seu rumo, pois a noite avança e o trabalho será árduo ao amanhecer.

Os homens saíram um por um, sem saber que esta era a última vez que o velho Ahmed seria visto.

Ao chegarem à taverna na parte da manhã, a encontraram destrancada, com cadeiras e mesas despedaçadas ao chão, além de uma bolsa feita de couro, cheia do sangue de cordeiros, não aberta por estar por demais amarrada.

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