sábado, 24 de setembro de 2011

O Bezerro de Ouro


Texto baseado em Êxodo

 32:1

O vento do deserto sopra ruidosamente à medida que o Sol se põe, fazendo-se ouvir por toda a planície à base do Sinai. As tendas de milhares de milhares são agitadas violentamente, como se prestes a serem arrancadas por gigantesca mão invisível.

O povo encontra-se inquieto, uma vez que o Príncipe do Egito subiu ao monte do deus de seus pais e não retornou, mesmo após uma Lua. Enquanto isso, o monte inteiro fumega e arde em seu cume com tamanha intensidade, que seu brilho rubro é refletido nas densas nuvens que pairam imóveis sobre o rochedo, tornando a atmosfera tensa e aterradora.

Tendo permanecido na terra de Gósen por quatrocentos anos, o povo adotou os costumes idólatras de seus senhores, costumes estes que são resolutos em permanecer em suas mentes e corações.

Alguns dos anciãos dos hebreus, grupo seleto que assistia junto aos sacerdotes egípcios, vendo que o Príncipe tardava em descer da montanha, tomaram-no por morto, supondo que a idade o tivesse vencido.

Decidiram então, em segredo, aplicar os conhecimentos místicos adquiridos durante a servidão, para suplicar aos deuses da terra sua clemência, pois se reputavam sozinhos.

Estavam enganados.

Os cânticos invocatórios começaram após a segunda vigília, ritmados, envolventes, profanos.

Mehet-uret! Mehet-uret!

Assim gritavam aqueles que tão cedo se desviaram daquele que lhes fez passar pelo mar, a pé enxuto, que operou sinais e prodígios nunca antes visto em toda a terra.

Mehet-uret! Mehet-uret!

Os cânticos prosseguiram por toda a noite. Sacrifícios eram trazidos e imolados sobre um altar de pedras não-lapidadas. O sangue inundava o chão enquanto mais animais eram arrastados e esquartejados, ao som da invocação blasfema.

Mehet-uret! Mehet-uret!

Subitamente, o que presidia o ritual fez gesto amplo com as mãos e, jogando-se por terra, em postura de submissão, declarou que haviam sido atendidos.

Vendo isto, os demais imitaram seu comportamento, enquanto aguardavam o desfecho da cerimônia.

Os segundos pareceram horas, até que um leve tremor se fez sentir. Alguns de mais débil compostura puseram-se a chorar, talvez realizando o mal que teriam invocado.

Ao fim do tremor, uma respiração pesada e profunda tornou-se manifesta aqueles homens. Ao procurarem sua origem, perceberam uma figura negra, mais alta que um ser humano comum, vestida de pesados mantos.

Sua face estava encoberta por um longo capuz, mas suas mãos, horrendas, deformadas, ameaçadoras, possuíam apenas quatro dedos que terminavam em longas protuberâncias pontiagudas.

Ao se mover, todos foram capazes de perceber que não possuía pés no sentido ordinário daquilo que é concebido como tal, sendo antes apenas o complemento grotesco e maldito de algo, cuja mera existência profana a realidade.

Vendo que dirigia-se em sua direção, aquele que realizava o rito levantou-se e, aterrorizado, suplicou pela ajuda daquele que havia atendido ao ritual.

Após certo tempo, pode-se ouvir um som baixo como um sussurro, vindo daquela figura espectral, o que fez com que a face do homem se tornasse mais confiante e tranqüila.

Ao cessarem os sons, o homem se reclinou reverentemente ao chão, atitude que todos repetiram. Ao levantarem os olhos, perceberam que estavam novamente a sós.

Todos ficaram aterrados com a aparição, mas guiados pelo que se comunicara com a entidade, foram instruídos a fundir uma imagem em sua honra.

Finalmente amanhecera.

Ao retornarem ao arraial, aqueles anciãos, a fina estirpe dos cativos, corromperam grande parte do povo com as promessas de farta comida e provisão, conquanto forjassem para si um ídolo, um bezerro de ouro.

Com a oferta de alimentos finos e iguarias, o povo que fora escolhido dentre as nações, separados pela promessa feita a seus antepassados, novamente se corrompera e desviara de seu caminho.

Naquela mesma noite, enquanto os eleitos se revolvem na imundícia de seu engano, o Príncipe observa da base do santo monte, enquanto segura as tábuas do mandamento de santidade, escritas pela própria mão do Deus de seus antepassados.

sábado, 3 de setembro de 2011

Terra de Faraós

Texto baseado em Êxodo
12:23

Nunca me esquecerei daquela noite, conta Ahmed antes de sorver demoradamente metade de seu vinho. Os olhares dos supersticiosos se entrecruzam, esperando como que famintos pelo alimento prestes a ser entregue.

Hoje, continua, sou avançado em dias e possuo mais rugas do que qualquer um dos presentes, mas estes olhos viram coisas que fariam a até mesmo ao mais intrépido e destemido, desejar a morte.

Do lado de fora da taverna mal cuidada, o vento sopra ruidosamente, forçando as dobradiças das pesadas janelas de madeira, ao passo que somente o crepitar do elemento devorador se faz ouvir dentro da construção, nos momentos em que Ahmed pausa para saborear mais um gole de vinho.

Tudo aconteceu quando aquele que fora retirado do Nilo retornou à terra. Todos aqui já ouviram as histórias dos pais de seus pais, sobre como os escravos se rebelaram e partiram em direção ao deserto abrasador, e também de como as trevas dominaram o dia. É tudo mentira, vocês poderiam dizer, mas lhes garanto que minha história é real, tão real que carrego isto comigo sempre aonde eu vou.

Neste momento, Ahmed levanta-se vagarosamente de seu assento e mostra uma volumosa bolsa feita de couro, cujo conteúdo, pelo som que emite ao ser movimentado, presume-se ser líquido.

Isto meus caros, é o motivo de hoje poder estar diante de vocês com vida. Duvidam? Pois bem, ouçam-me atentamente e julguem por si mesmos se a história de minha vida será fantástica demais. Na verdade, Ahmed senta-se vagarosamente em sua cadeira enquanto prende seu olhar na lareira ardente, minha vida tem sido uma constante fuga do horror.

Quando era jovem, me enamorei por uma bela escrava. Nós costumávamos nos encontrar às escondidas e já havíamos decidido nos unir, quando o Príncipe retornou. Tudo mudou desde então. Não podia mais encontrá-la porque sua família falava no fim da escravidão. Por dias não nos vimos.

Até aquela noite.

Os escravos estavam por demais agitados durante o dia. Falavam e corriam enquanto guardavam seus pertences. Muitos animais foram mortos naquele dia. Seus gritos eram ouvidos em toda a região, terríveis... abomináveis.

Ao cair da noite, todos os escravos se recolheram em suas casas, e um silêncio sepulcral cobriu a terra. Nem mesmo os cães latiram por toda a noite.

Quando a lua atingiu seu ápice, os gritos começaram. Mas não eram os gritos dos sacrifícios dos escravos. Vindos das casas dos artesãos, dos oleiros, dos guardas, dos sacerdotes e até mesmo da casa do próprio Faraó, o horror se fez ouvir por todo o Egito.

Oh deuses antigos! Aquela noite nunca mais passaria! Nunca mais veríamos o disco solar! Estávamos sós.

Aterrorizado com todo aquele espetáculo caótico e terrível, decidi sair de casa e ver se minha amada estava bem. Tinha de protegê-la a todo o custo, custasse o que custasse!

Corri resolutamente através das vielas estreitas. Pessoas jaziam caídas ao chão, suas faces terrivelmente deformadas pelo terror. Somente a Lua iluminava o caminho, até que finalmente cheguei a meu destino.

A sua casa era pequena como a de todo o escravo, mas notei que nos umbrais havia algo manchado, como se fora pintado de forma descuidada.

Bati à porta freneticamente. Gritei por seu nome. Escutei passos e logo depois a porta se abriu, revelando várias pessoas dentro do aposento mal iluminado. Todas estavam vestidas como se para empreender longa jornada. Cajados à mão, sandálias nos pés, à roda de uma mesa.

Ela estava lá. Ao me ver, correu ao meu encontro e me disse que esta era a última vez que nos veríamos. Disse também que ao amanhecer, o Deus hebreu os retiraria do cativeiro, e que os levaria à terra de seus pais.

Ao se despedir de mim, deu-me uma bolsa parecida como esta que lhes mostrei, recomendando-me que ao sinal de perigo, despejasse o conteúdo sobre mim. Foi a última vez que a vi.

Triste com tal despedida, havia me esquecido de tudo e todos à volta, até que um bramido descomunal me fez voltar à realidade. Foi então que eu o vi.

Aquilo se movia vagarosamente, mas de tamanho absurdo e negro como piche. Sua forma era como se vinda do pesadelo de um homicida. Sua respiração era pesada e dificultosa, expelindo um vapor espesso a cada baforada.

Fiquei estático. Paralisado. O medo tomara conta de mim. Minha única reação foi ficar imóvel, enquanto via aquilo segurar um homem com quase o dobro de minha altura e rasgá-lo ao meio, como se feito de papiro.

Foi então que aquilo virou-se e percebeu minha presença, movendo-se com agilidade antes não demonstrada, em minha direção.

Minha mão ainda segurava a bolsa que me fora entregue. Agindo como que por extinto, abri-a e despejei seu conteúdo viscoso sobre minha cabeça, enquanto observava a aproximação daquela encarnação da fúria primitiva.

Lembro-me, por fim, somente de sentir o hálito congelante daquilo, quando minha consciência me deixou. Acordei somente no dia seguinte, vendo-me coberto com sangue. Não, não era meu, mas sim o do sacrifício dos hebreus. O último presente de minha amada: uma bolsa com sangue. Por algum modo, os escravos sabiam que o sangue os protegeria daquilo.

Por que carrego isto comigo? Descobri naquele dia que eu sou o único primogênito vivo daquela geração dos filhos do Egito, e que desde então eu seria caçado até o fim de meus dias. Por isso carrego esta bolsa, cheia do sangue de cordeiro, bem amarrada para que não se perca uma só gota do líquido que me dá a vida.

Bem, meus amigos, esta é a história do último primogênito do Egito. Paguem suas bebidas e tomem seu rumo, pois a noite avança e o trabalho será árduo ao amanhecer.

Os homens saíram um por um, sem saber que esta era a última vez que o velho Ahmed seria visto.

Ao chegarem à taverna na parte da manhã, a encontraram destrancada, com cadeiras e mesas despedaçadas ao chão, além de uma bolsa feita de couro, cheia do sangue de cordeiros, não aberta por estar por demais amarrada.