sábado, 20 de julho de 2013

As Montanhas Azuis



As Montanhas Azuis

 "A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo que ela contém. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e não estávamos destinados a chegar longe. As ciências, cada uma puxando para seu próprio lado, nos causaram poucos danos até agora, mas algum dia a junção das peças do conhecimento disperso descortinará visões tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa posição dentro dela que só nos restará enlouquecer com a revelação ou fugir da iluminação mortal para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas."                                                                                                                                                                                                                                                                                  HP Lovecraft in O Chamado de Cthulhu

Prefácio ao Diário do Prof. Isaac von Neumann

Antes de começar a descrever os relatos de viagem neste diário, achei por bem efetuar breve histórico sobre os motivos que me levaram à incursão rumo ao desconhecido, para que o leitor deste possa ter à mão a informação mais fidedigna possível.

Sempre tive estranha atração pelas montanhas.

Rochedos e escarpas sempre foram objetos e locais presentes em meus sonhos, desde que posso lembrar. Assim, sempre que empreendo alguma viagem ou expedição, tenho o cuidado de observar as diversas formações rochosas, tentando descobrir as forças titânicas que as moldaram em tempos imemoriais.

Assim procedi na Península do Sinai, no Monte Carmelo, nos Pirineus e nos Alpes.

Estou nesta cidade a cerca de dez anos, desde que completei meu doutorado em História Semita, tendo como formação inicial o estudo da Teologia Bíblica, lecionando em diversas cadeiras no seminário local, mais precisamente com o enfoque na história vétero-testamentária.

Aqui, possuo modesta residência com vistas às montanhas locais que, em seu pico mais elevado, chega a impressionantes 1.956 metros de altitude.

Nos breves momentos do ocaso, em que não estou ocupado com livros e correções de trabalhos, tenho por hábito sentar-me na varanda de minha casa, e apreciar o Sol que se põe em meio às escarpas. Em questão de minutos, a abóboda celeste varia de um amarelo vívido, para um vermelho intenso, e depois gradualmente esfria para tons mais próximos ao violeta, até que tudo se torna escuro, com somente as estrelas e os picos por testemunhas.

Tenho repetido este hábito ao longo destes dez anos em que aqui estou, tendo presenciado pores-do-sol magníficos e distintos uns dos outros, mas também alguns fatos exóticos que, somente por estar atento ao espetáculo celeste, pude perceber, não uma vez, mas várias vezes, ao longo destes anos de observação.

São exatamente estes fatos exóticos que me fizeram escrever este diário, uma vez que após todos estes anos observando, reuni a coragem necessária para decifrar tal mistério que a tanto me maravilha.

O período letivo acabou a pouco, obtendo assim o tempo necessário para alguns dias de caminhada investigativa, o que começarei amanhã, pela madrugada.

Prof. Isaac von Neumann

Dia 1

Conforme prometido, acordei cedo para evitar andar durante o maior calor do dia. Saí de minha casa com uma pesada mochila nas costas, recheada de mantimentos, uma faca ghurka atada à perna direita, e uma lanterna elétrica presa à alça esquerda da mochila. Carrego também meu fiel revolver colt, para o caso de ter de me defender de forma mais ativa. Os romanos me ensinaram em um de seus vários provérbios que prudens cum cura vivit (o prudente vive com cuidado), assim sendo, devidamente equipado parti pela noite adentro.

Por ser inverno, o ar estava frio, mas não insuportavelmente frio, mas me ardia os pulmões cada vez que inspirava, exalando em seguida uma nuvem de vapor.

Caminhei por umas duas horas, até que parei perto de uma grande rocha, que me serviu de assento por breves minutos, até que tivesse recuperado o fôlego.

Quando a aurora começou a despontar, já estava a alguns quilômetros de casa, tendo saído da estrada principal, me adentrando em estradas secundárias e terciárias.

Nesta cidade o asfalto cede lugar muito rápido a paralelepípedos e, com impressionante rapidez, à simples estrada de chão de terra batida, cuja poeira se apega à roupa com notável eficiência. Tive de usar parte de minhas roupas para tampar nariz e boca, devido ao vento contrário que peguei.

Ao meio dia, sentei-me debaixo de uma grande árvore à beira de um riacho. Ali descansei por algumas horas, até que o calor amainasse, aproveitando as aguas gélidas para refrescar cabeça e pés, estes já doloridos da caminhada.

Por volta das quatro horas da tarde, desfiz o pequeno acampamento e prossegui viagem, agora margeando o pequeno córrego. Em meus estudos preliminares, baseado nos relatos dos exploradores destas terras, deduzi que este rio me levaria pela parte menos íngreme da montanha, o que me pouparia energias para a subida.

Já são aproximadamente nove horas da noite, enquanto escrevo estes traços. Andei por mais algumas horas, até que encontrei um local mais elevado e aberto, junto ao rio, para aqui montar meu acampamento noturno.

Um silêncio desconcertante tomou conta do local, a cerca de meia hora. Somente ouço o crepitar de minha fogueira, além do constante ruído do rio que já desce algumas pedras.

Suplemento

Acordei porque pensei ter ouvido ruídos na mata. Deixei a arma perto de mim, por precaução.


Dia 2

Maldita imaginação!

Não consegui dormir mais depois de ter acordado assustado. A luz tênue da Lua me fez ver todo tipo de sombras à noite.

Depois de tentar inutilmente, decidi recolher meu material e esperar quieto pelos primeiros raios de Sol.

Assim que clareou o suficiente, parti de meu acampamento e comecei efetivamente a subir as montanhas, sempre acompanhando o pequeno rio à minha direita.

A caminhada foi difícil. Tive de parar várias vezes para recuperar o fôlego, o que me fez perder tempo e energia. Felizmente encontrei uma trilha mais nivelada, ligeiramente íngreme, que me guiou por entre pastos verdejantes.

Ao meio dia decidi parar e recuperar as forças. Almocei e descansei. O rio ficou mais distante desta vez, porque não desejei ficar exposto ao Sol, antes preferindo a refrescante sombra das árvores.

Dormi mais do que desejava. Acordei já atrasado para partir. Acho que perdi uma hora de iluminação para o sono!

Consegui andar por mais algum tempo, até que encontrei um ótimo ponto para montagem do acampamento.

Desta vez o rio está longe de mim. Uma queda d’água me impediu de margear o rio, forçando-me a adotar um caminho alternativo.

Do local onde escrevo agora, tenho já uma visão da planície por onde vim, bem como do leito do rio que venho acompanhando e da cidade ao fundo.

Percebo a reentrância feita pelo rio em meio às copas das árvores, uma vez que estou em local mais alto que elas agora.

Hoje está mais frio do que nos últimos dias. Reforcei meu estoque de gravetos para a noite.
A Lua já está no céu. Amanhã será noite de Lua cheia, e espero estar no cume desta montanha a tempo para vê-la nascer no horizonte.

Suplemento

Novamente o silêncio toma conta do local. Meus sentidos não me deixam descansar. Pareço ouvir até os passos das formigas!


Dia 4

Que dia terrível!

O espanto e o terror tomaram conta de mim! Nada pude fazer para ajudar aquela pobre mulher...
Ainda estou assustado, terrivelmente assustado, mas agora consigo pensar com um pouco mais de clareza, para poder escrever neste diário.

Ontem decidi empregar todas as minhas forças para chegar ao cume da montanha, e assim o fiz. Descansei o mínimo necessário, me embrenhei no mato e, ao cair da noite, cheguei ao ponto mais alto daquela rede de montanhas que tanto me atraíram nos últimos anos.

Visto de longe, da cidade, a impressão que se tem é que a montanha vai afinando até que se torna como uma ponta de agulha, mas a realidade não é assim.

O topo é um lugar relativamente plano, com ondulações e desníveis, hora sutis hora acentuados, onde poças de água se formam devido às chuvas ocasionais. O local é amplo o suficiente para acomodar algumas dezenas de casas, e a vista proporcionada é nada menos do que deslumbrante.

Por alguns instantes jubilei do feito que alcancei, afinal, não são todos que em minha idade fariam tal empreitada.

Porém, ao sentar-me em um dos desníveis, comecei a escutar vozes, o que definitivamente não esperava ouvir naquele lugar.

Meu primeiro instinto foi o de esconder-me, afinal, a sobrevivência precede a curiosidade, e neste local estranho, quem eu poderia encontrar aqui?

Meus instintos se provaram confiáveis novamente.

Vestidos com roupas similares a mantos, pelo menos vinte pessoas surgiram de um dos lados do cume, entoando certo tipo de cântico que, a princípio, não me pareceu conhecido.

Pensei que se tratariam de grupos espiritualistas, como tantos que se fazem notar nas notícias dos periódicos, mas desconhecia qualquer grupo deste tipo, aqui nesta região.

À distância, permaneci escondido daquelas figuras encapuzadas, enquanto entoavam seus cânticos e dançavam em torno de uma fogueira recém-acesa.

Senti-me em algum tipo de ritual pagão, onde deuses inauditos eram invocados, e onde nomes que deveriam ser esquecidos eram pronunciados em direção às estrelas que agora já permeavam o firmamento.

Intriguei-me em pensar que todas as vezes que via certa claridade nestes cumes, eram estes quem estavam a dançar e a invocar suas divindades primitivas.

Contudo, o verdadeiro horror começou quando a Lua já estava em seu ponto mais elevado nos céus.
Fiquei, acredito, por volta de duas horas escondido em uma das reentrâncias provocadas pelos séculos de erosão, tomando notas daquele grupo tão pitoresco, mas meu sentimento mudou de curiosidade para o terror quando, dentre os cultistas, uma deles se despiu e pôs-se deitada sobre uma mesa irregular, esculpida pelas intempéries do tempo.

Os demais se aproximaram e formaram um círculo em volta daquela mulher, enquanto um outro, que portava um grande tomo, o abriu e começou a proferir palavras que me soaram familiares.

Aquilo parecia algum tipo de idioma semítico, com palavras cujos radicais vez ou outra pareciam ser hebraicos.

Pude distinguir certas palavras que se repetiam, para meu espanto. Palavras como sacrifício, deuses, expiação e retribuição. Também pude ouvir algo relacionado a livro e a sombras.

Já assustado, decidi manter as escrita, temendo pelo pior, uma vez que, se me lembrava bem, existiam diversos cultos no oriente próximo, cultos estes de origem cananéia, suméria e acádia, praticados desde épocas anteriores a quando a escrita ainda estava em seus primórdios, e que sempre terminavam com o sacrifício de per si.

Decidi que não permitiria a morte ritualística de ninguém naquela noite. Peguei minha arma, contei as munições que tinha à disposição, e esperei pelo momento do clímax.

Em alguns minutos, estava pronto para atirar ao alto, mas o alarme foi falso. O cultista que realizava o ritual havia sacado uma longa adaga sinuosa e, ao invés de desferir um golpe contra aquela que se encontrava deitada, efetuou um corte em sua própria mão, passando a aspergir a mulher com seu próprio sangue.

Foi então que tudo começou.

De súbito fez-se o mais absoluto silêncio no local, quebrado apenas pelo som das madeiras que estalavam na grande fogueira.

Comecei então a sentir leve tremor no chão. Percebi que assim que o tremor começou, os que ali estavam, com a exceção da mulher, se afastaram da mesa sacrificial e se puseram entre mim e ela, mas ainda não haviam me visto.

Foi então que o tremor que, até o momento, era leve tornou-se cada vez mais forte e próximo, como se algo grande e pesado estivesse correndo em nossa direção.

Para meu horror, tudo se iniciou com um terrível e nauseante odor, tal qual eu nunca antes experimentara.

Tive de ajoelhar-me para não vomitar alto demais.

Enquanto estava tentando me recompor, comecei a ouvir um coro de vozes que, embora tenha começado leve, tornou-se extremamente alto e potente.

Contudo, ele não me impediu de ouvir o grito desesperado da mulher, que urrava como um animal selvagem.

Levantei-me ainda tonto, arma em punho, mas demorei a realizar o que estava vendo diante de mim.

De princípio achei que a mulher estava presa em uma árvore, como se pendurada pela cintura, mas não me recordava de nenhuma árvore naquele lugar, muito menos uma tão alta.

Minha mente pareceu se recusar a entender a natureza terrível que se descortinava à minha frente.
Somente quando a mulher teve a primeira perna devorada foi que percebi que aquilo jamais poderia ser uma árvore!

Percebi que era algo grotesco o que se interpunha entre mim e a sanidade que se esvaia. Aquilo era o que compõe os pesadelos mais primários, a razão do instinto de sobrevivência inerente a todo ser, o propósito do medo do desconhecido.

Oh! Como descrever aquilo?!

Lembro-me muito bem, principalmente do rosto daquela mulher. Aquela cena me acompanhará pelo resto de minha agora curta vida...

Aquilo era alto como uma construção de médio porte, talvez uns dez ou doze metros. Seu corpo era circular como um barril, sendo sustentado por três poderosas pernas, cujo feitio me lembrava o dos bodes e cabras. Havia pelo menos uma bocarra principal, com alguns orifícios similares, porém menores, espalhados pela superfície. Como se ainda pudesse ser pior, aquilo possuía membros longos e sinuosos em seu topo, onde em um deles segurava a carcaça semidevorada daquela mulher.

O pânico tomou conta de mim quando, em seu último suspiro de vida, aquela que fora sacrificada, mediante esforço sobre-humano, apontou em minha direção, soltando um último urro enquanto era literalmente devorada viva!

Os demais cultistas, se virando, depararam-se comigo totalmente paralisado, enquanto empunhava tremulamente minha colt.

Não sei exatamente o que me levou a correr. Minha mente estava esfacelada ante ao inexorável choque de realidade que sofri.

Somente sei que corri.

Tudo aquilo em que acreditamos rui e se torna pó quando somos confrontados com o horror em escala cósmica.

Deixei tudo e todos para trás, correndo desvairadamente em meio à mata fechada. Acho que tropecei e caí algumas vezes, porque acabei por deslocar meu ombro esquerdo, além de ter vários ferimentos nas mãos e no rosto.

Escrevo agora mais calmo, enquanto estou sentado no confortável assento de um veículo que, providencialmente, cruzou meu caminho.

Posfácio

Depois de três dias internado no hospital, obtive autorização do médico que me atende para continuar minha escrita.

Tentei pedir que alguma autoridade policial viesse a mim, mas ninguém veio.

Me disseram que passei o último dia delirando sobre “o horror na mata”, tendo sido alvo de vários sedativos.

Ouvi as enfermeiras conversando hoje pela manhã. Pelo que entendi, parece que invadiram minha casa durante a madrugada e deixaram algum tipo de animal morto em seu interior, mas não quiseram me contar, porque disseram que estou fraco e debilitado.

Temo pela minha vida agora. Acho que encontraram minha mochila com meus pertences, com certeza sabem quem sou e provavelmente onde estou agora.

Preparei e revisei este relato para ser entregue às autoridades, caso eu esteja incapacitado de fazê-lo pessoalmente, o que provavelmente aconteceu uma vez que outrem o está lendo agora.

Espero que você, que lê minha última obra, possa entregar este documento a quem de direito, alertando as autoridades sobre as mortes e sobre aquilo que ronda as Montanhas Azuis.

Prof. Isaac von Neumann