O Rio
É sabido que a mente humana,
quando em certas situações específicas, tem a incrível capacidade de se confundir
com sons e imagens que, a priori, não
aconteceram, chegando ao absurdo de, em casos extremos, gerar lembranças
vívidas de fatos impossíveis de terem existido.
Desnecessário dizer que, por mais
realistas que sejam, imagens e sons fantásticos são parte exclusiva do campo da
imaginação, devaneios oníricos que colocam à prova a percepção e resiliência da
mente humana.
Contudo, ainda tenho calafrios
quando me recordo daquelas visões... e tremo ao ouvir o som do vento nas
folhas... mas tudo não passou de um delírio, um surto de uma mente cansada...
O rio no qual pescava, muito
embora seja calibroso em largura e em volume d’água, não consta de mapas da
minha região, pois diferentemente de outros rios que desaguam inexoravelmente
no mar, esse adentra novamente as profundezas da terra, por meio de um grande e
voraz sumidouro. Por isso, acredito que poucos conheçam sua breve existência
superficial, senão aqueles que habitam nestas terras ermas.
Gosto, ou ao menos gostava, de
ficar sentado por horas a fio, nas margens desse rio, especialmente durante a
tarde, observando as montanhas de onde ele se origina, enquanto o céu esfria de
seu tom amarelado para um vermelho vívido, o que sempre acompanha o silvo dos
ventos gélidos. Nesse momento, sei que é melhor me levantar e voltar para casa.
O dia estava anormalmente frio,
por isso recostei-me junto ao tronco de uma grande árvore, enquanto me aquecia
com o brilho do sol. Acabei adormecendo com o ruído das águas, sendo embalado
por elas, até que a sensação de frio se abateu sobre meu corpo.
Acordei encolhido, num esforço
reflexo para me manter aquecido, quando percebi que havia dormido demais.
O céu já estava violeta, com
algumas estrelas já despontadas em sua abóboda. Tudo estava silencioso,
mortalmente quieto. Até mesmo o rio estava mudo, como se à espera de algo.
Lembro-me de esfregar os olhos
ainda pesados, quando senti a terra tremer.
Um odor nauseante tomou conta do
local, algo tão repugnante que não possuo palavras para descrever aquilo.
Enquanto recobrava o fôlego,
senti que aquilo que fazia a terra tremer estava se aproximando de minha
localização, e parecia ser muito pesado.
Do outro lado do rio não havia
uma margem bem definida, antes um barranco se levantava, e em seu topo havia
árvores grossas e antigas, cujas raízes brigavam para manter firme a terra que
a água insistia em escavar.
Não vi aquilo diretamente, mas
era enorme, e se movia pesadamente por detrás daquelas árvores.
Quando parou, pude ouvir sua
respiração pesada se alterar para algo como... um farejar!
Minha mente atordoada fez com que
meu corpo congelasse, enquanto via aquele ser indescritível farejar minha
localização.
Aqueles momentos pareceram uma
eternidade, mas enfim passou. Aquilo voltou a caminhar descompassadamente para
longe de minha posição.
Quando me senti protegido, me
levantei e comecei a percorrer meu caminho para voltar, mas um urro fez meu
coração quase explodir no peito.
Correndo atrás de mim, aquilo se
avolumava pela margem do rio!
Era um pesadelo! Tinha de ser um
pesadelo!
Havia ao menos duas mandíbulas
dentadas, que espumavam freneticamente, enquanto três poderosas patas pisavam o
leito do rio. Membros sinuosos balançavam sobre seu topo, longos e ameaçadoramente
hostis, jogados hora para a esquerda, hora para a direita e frente, enquanto
aquilo trombava em árvores e esmagava pedras.
Corri, mas não o suficiente.
Aquilo segurou minha perna esquerda e, com um urro, me arremessou como a um
graveto.
Lembro-me de cair na água, e nada
mais.
Quando dei por mim, estava em
casa, deitado em minha cama. Não me recordo como ou quando cheguei aqui, e me
recuso a acreditar que aquilo é real.
Porém, o ferimento recém descoberto em minha perna esquerda me faz duvidar de mim mesmo, e tremer pelo pior.