Que me seja permitido, no momento, chamar-me William Wilson. A página
em branco, que tenho diante de mim, Não deve ser manchada com meu
verdadeiro nome. Esse nome já tem sido demais objeto de desprezo, de
horror e de ódio para minha família. Os ventos indignados Não têm
divulgado, até nas mais longínquas regiões do globo, a sua incomparável
infâmia? Oh! de todos os proscritos, o proscrito mais abandonado! ? não
estás morto para sempre a este mundo, às suas honras, suas flores e
aspirações douradas? ? e uma nuvem densa, lúgubre, ilimitada, não pende
eternamente entre tuas esperanças o céu?
Não desejaria, mesmo que pudesse, encerrar hoje, nestas páginas, a
lembrança dos meus últimos anos de indizível miséria e crimes
imperdoáveis. Esse período recente de minha vida alcançou subitamente um
auge de torpeza. da qual quero apenas determinar a origem. Os homens,
em geral, tornam-se vis gradualmente. Mas, de mim, toda virtude se
desprendeu num minuto, de repente, como um manto. Da perversidade
relativamente comum, encontrei-me, a. passo de gigante, em enormidades
maiores que as de Heliogábalo. Permitam-me contar o acaso, o acidente
único que me trouxe essa maldição. A morte se aproxima e a sombra que a
precede lançou uma influência suavizadora em meu coração. Passando
através do sombrio vale, anseio pela simpatia ? ia dizer piedade ? de
meus semelhantes. Desejaria persuadi-los de que fui, de certa maneira, o
escravo de circunstâncias que desafiavam todo o controle humano.
Desejaria que descobrissem para mim, nos detalhes que lhes vou dar,
algum pequeno oásis de fatalidade, num deserto de erros. Queria que
concordassem ? se é que não podem recusar-se a concordar que, embora
este mundo tenha conhecido grandes tentações, jamais um homem foi
tentado assim e certamente jamais sucumbiu desta maneira. Será por isso
que não conheceu os mesmos sofrimentos? Na verdade não terei vivido num
sonho? Não estarei morrendo vítima do horror e do mistério das mais
estranhas de todas as visões sublunares?
Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos, por um
temperamento imaginativo e facilmente impressionável; e minha primeira
infância provou que eu herdara em cheio o caráter de minha família.
Avançando em idade, esse caráter desenvolveu-se com mais força,
tornando-se, por várias razões, uma causa de séria inquietação para meus
amigos e de prejuízo positivo para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso,
dado aos mais selvagens caprichos, fui presa de paixões indomáveis. Meus
pais, que eram de espírito fraco, e atormentados pelos defeitos
constitutivos da mesma natureza, pouco podiam fazer para deter as
tendências más que me caracterizavam. Fizeram algumas tentativas fracas,
mal dirigidas, que fracassaram completamente e que para mim trouxeram
um triunfo completo. A partir desse momento, minha voz foi uma lei
doméstica e, numa idade em que poucas crianças deixam de obedecer à
disciplina, fui abandonado ao meu livre arbítrio e tornei-me senhor de
todas as minhas ações exceto de nome.
Minhas primeiras impressões da vida de estudante ligam-se a uma vasta e
extravagante casa do estilo elisabetano, numa aldeia sombria da
Inglaterra, decorada de numerosas árvores gigantescas e nodosas e da
qual todas as casas eram excessivamente antigas. Parecia, na verdade, um
lugar de sonho, essa velha cidade venerável, bem própria para encantar o
espírito. Neste momento, mesmo, sinto na imaginação o estremecimento do
frescor de suas avenidas profundamente sombreadas, respiro as emanações
de seus mil bosques e tremo ainda com uma indefinível volúpia à nota
profunda e surda do sino, rompendo, a cada hora, com seu rugir súbito e
moroso, a quietude da atmosfera sombria na qual se enterrava e adormecia
o campanário gótico todo denteado.
Encontro talvez tanto prazer quanto me é possível experimentar ainda,
demorando sobre essas minuciosas recordações da escola e de seus sonhos.
Mergulhado como me encontro na desgraça ? infelicidade, ai de mim! por
demais real ?, espero que me perdoem procurar um alívio, bem leve e bem
curto, nesses detalhes pueris e divagantes. Aliás, embora absolutamente
vulgares e risíveis em si mesmos, esses acontecimentos tomam, em minha
imaginação, uma importância circunstancial, devido à sua íntima relação
com os lugares e a época onde agora distingo as primeiras advertências
ambíguas do destino, que desde então me envolveu tão profundamente em
sua sombra. Deixem-me pois recordar.
A casa, como disse, era velha e irregular, os terrenos vastos e um alto e
sólido muro de tijolos, coroado por uma camada de cimento e de vidro
quebrado, os rodeava. Essa fortificação, digna de uma prisão, formava o
limite de nosso domínio. Nossos olhares não iam além senão três vezes
por semana ? uma vez cada sábado à tarde, quando, acompanhados por dois
professores, tínhamos permissão para dar passeios curtos em comum,
através do campo, nas imediações e duas vezes ao domingo, quando íamos,
com a regularidade de tropas em parada, assistir aos ofícios da manhã e
da tarde, no único templo da aldeia. O diretor de nossa escola era o
pastor dessa igreja. Com que profundo sentimento de admiração e de
perplexidade eu costumava contemplá-lo, de nosso banco afastado, na
tribuna, quando subia para o púlpito, com um passo solene e lento! Essa
personagem venerável, de rosto tão modesto e benigno, de roupa tão bem
escovada e caindo de maneira impecavelmente eclesiástica, de peruca tão
minuciosamente empoada, rígida e vasta, seria o mesmo homem que havia
pouco, com um rosto irascível e a roupa manchada de rapé, fazia
executar, férula em mão, as leis draconianas da escola? Oh! Gigantesco
paradoxo cuja monstruosidade exclui toda solução!
Num ângulo do muro maciço, uma severa porta, ainda mais maciça,
solidamente fechada, guarnecida de ferrolhos e encimada por espigões de
ferro denticulados. Como eram profundos os sentimentos de terror que
inspirava! Nunca se abria senão para as três saídas e entradas
periódicas de que já falei; então, em cada rangido de seus gonzos
potentes, encontrávamos uma plenitude de mistério ? todo um mundo de
observações solenes ou de meditações ainda mais solenes.
O vasto recinto era de forma irregular e dividido em várias partes, das
quais três ou quatro das maiores constituíam o pátio de recreio. Era
aplainado e recoberto de um saibro fino e duro. Lembro-me bem de que não
continha árvores, nem bancos, nada de semelhante. Naturalmente ficava
situado atrás da casa. Diante da fachada, estendia-se um pequeno terraço
plantado de buxos e outros arbustos, mas não atravessávamos esse
recanto sagrado senão em raras ocasiões, por exemplo, o dia da chegada à
escola, o dia da partida definitiva, ou então quando um parente ou
amigo nos mandava chamar, e seguíamos alegremente para a casa paterna,
nas férias de Natal, ou de verão.
Mas a casa! ? que estranha e antiga construção! Para mim, que verdadeiro
palácio encantado! Realmente, eram infindáveis os seus desvios, as suas
incompreensíveis subdivisões. Era difícil dizer com certeza, a
determinado momento, se nos encontrávamos no primeiro ou no segundo
pavimento. De uma peça a outra, tinha-se sempre a certeza de encontrar
dois ou três degraus a subir ou descer. Além disso, as subdivisões
laterais eram inúmeras, inconcebíveis, giravam de tal maneira umas sobre
as outras, que nossas idéias mais exatas, acerca do conjunto do
edifício, não eram muito diferentes daquelas através das quais
considerávamos o infinito. Durante os cinco anos de residência ali,
nunca fui capaz de determinar, com precisão, em que localidade longínqua
ficava situado o pequeno dormitório que me fora designado em comum, com
mais dezoito ou vinte outros escolares.
A sala de estudo era a mais vasta da escola e ? eu não podia deixar de
pensar ? até mesmo do mundo inteiro: longuíssima, muito estreita e
lugubremente baixa, com janelas em ogiva e teto de carvalho. Num canto
afastado, de onde emanava o terror, havia um recinto quadrado, de oito a
dez pés, representando o sanctum “durante horas” do nosso diretor, o
Reverendo Doutor Bransby. Era uma sólida estrutura, de porta maciça, e, a
abri-la na ausência do Dominie, teríamos preferido morrer, da peine
forte et dure. Em dois outros ângulos, dois recintos análogos, muito
menos reverenciados, sem dúvida, mas ainda assim de um terror bastante
considerável. Um era a cátedra do mestre de humanidades e o outro a do
professor de inglês e matemática. Espalhados através da sala, inúmeros
bancos e cadeiras, terrivelmente carregados de livros maculados pelos
dedos e cruzando-se numa irregularidade sem fim ? negros, antigos,
devastados pelo tempo, tão marcados de letras iniciais, nomes inteiros,
figuras grotescas e outras inúmeras obras-primas da faca, que haviam
perdido o pouco da forma original que lhes fora designada, em dias muito
antigos. Numa extremidade da sala, encontrava-se um enorme balde cheio
de água e na outra um relógio de prodigiosa dimensão.
Encerrado entre os muros maciços dessa escola venerável, passei contudo,
sem tédio ou repulsa, os anos do terceiro lustro de minha vida. O
cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior de incidentes
para o ocupar e divertir e a monotonia, aparentemente lúgubre, da
escola, era repleta de excitações mais intensas do que todas as que
minha juventude, mais amadurecida, exigiu à volúpia, ou minha
virilidade, ao crime. Entretanto, julgo dever dizer que meu primeiro
desenvolvimento intelectual foi, em grande parte, pouco comum e até
mesmo outré. Em geral, os acontecimentos da existência infantil não
deixam sobre a humanidade, chegada à idade madura, uma impressão bem
definida. Tudo é sombra, cinza, débil e irregular recordação, confusão
de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos. Comigo isso não
aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de um homem
feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão vivas,
tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartaginesas.
E contudo, de fato ? do ponto de vista comum do mundo ¯, como havia la
tão pouca coisa para relembrar! O despertar, de manhã, a ordem para
deitar-se, as lições a aprender, os recitativos, as meias férias
periódicas e os passeios, o pátio de recreio, com suas disputas, seus
passatempos, suas intrigas, tudo isso, por uma magia psíquica
desaparecida, continha em si um desvario de sensação, um mundo rico de
incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações das mais
apaixonadas e embriagadoras. Oh! Le bon temps que ce siècle de fer!
Na realidade, minha natureza ardente, entusiasta, imperiosa fez de mim,
dentro em pouco e entre meus camaradas, um caráter marcado, e pouco a
pouco, naturalmente, deram-me um ascendente sobre todos os que não eram
mais velhos do que eu ? sobre todos, exceto um. Era um aluno que, sem
qualquer parentesco comigo, tinha o mesmo meu nome de batismo, o mesmo
nome de família ? circunstância pouco notável, em si ? porque meu nome,
malgrado a nobreza de minha origem, era um desses nomes vulgares que
parecem ter sido, desde tempos imemoriais, por direito de prescrição, a
propriedade comum da multidão. Nesta narrativa dei a mim mesmo o nome de
William Wilson, fictício, porém não muito distante do verdadeiro. Meu
homônimo, somente, entre os que, segundo a fraseologia da escola,
compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos, nos jogos
e nas discussões do recreio, recusar uma crença cega em minhas
assertivas e uma submissão completa à minha vontade ? em suma contrariar
minha ditadura, em todos os casos possíveis. Se jamais existiu sobre a
terra um despotismo supremo e sem reservas, é bem o despotismo de um
menino de gênio sobre as almas menos enérgicas de seus camaradas.
A rebeldia de Wilson era para mim origem do maior constrangimento, tanto
mais que, apesar das bravatas com que eu julgava dever tratá-lo
publicamente, a ele e às suas pretensões, sentia, no íntimo, que Wilson
me intimidava e não podia deixar de considerar a equanimidade que
mantinha tão facilmente diante de mim, como a prova de uma verdadeira
superioridade ? pois havia de minha parte um esforço perpétuo para não
ser dominado. Contudo, essa superioridade, ou antes igualdade, não era
verdadeiramente conhecida senão por mim; nossos camaradas, por uma
inexplicável cegueira, nem mesmo pareciam desconfiar disso. E, de fato,
sua rivalidade, sua resistência e particularmente sua impertinente e
irritadiça intervenção em todos os meus desígnios não eram tão
manifestas, e antes, confidenciais. Ele parecia igualmente desprovido da
ambição que me levava a dominar e da energia apaixonada que me dava os
meios para isso. Poder-se-ia crer que, nessa rivalidade, Wilson era
dirigido unicamente por um desejo caprichoso de opor-se a mim, de me
espantar, ou mortificar; se bem que houvesse casos em que eu não podia
deixar de notar, com um sentimento confuso, de surpresa, humilhação e
cólera, que ele punha em seus ultrajes, suas impertinências e
contradições certos ares de afetuosidade, dos mais intempestivos e, sem
dúvida, mais desagradáveis do mundo. Eu não podia compreender uma
conduta tão estranha senão supondo-a o resultado de uma suficiência
perfeita, permitindo-se o tom vulgar da condescendência e da proteção.
Talvez fosse por esse último traço, na conduta de Wilson ? acrescido da
nossa homonímia e o fato puramente acidental de nossa entrada simultânea
na escola ?, que todos. entre nossos condiscípulos das classes
superiores, acreditavam que éramos irmãos. Habitualmente, esses
estudantes não se informam com muita exatidão quanto aos assuntos dos
mais jovens. Já disse antes, ou deveria tê-lo dito, que Wilson não era,
nem em grau afastado, parente de minha família. Mas decerto, se fôssemos
irmãos, teríamos sido gêmeos: pouco depois de ter deixado a escola do
Doutor Bransby soube, por acaso, que o meu homônimo nascera em 19 de
janeiro de 1813 ? coincidência bastante notável, sendo esse dia,
precisamente, o do meu nascimento.
Pode parecer estranho que, malgrado a contínua ansiedade que me causava a
rivalidade de Wilson e seu insuportável espírito de contradição, eu não
era levado a odiá-lo completamente. Sem dúvida, quase todos os dias
tínhamos uma briga, na qual, concedendo-me publicamente os louros da
vitória, ele conseguia, de certa maneira, fazer-me sentir que eu não os
merecera. Contudo, um sentimento de orgulho, de minha parte, e uma
verdadeira dignidade, da dele, nos mantinham sempre em termos de estrita
cortesia, apesar de haver muitos pontos de forte identidade no nosso
caráter, que faziam despertar em mim o desejo, reprimido talvez pela
nossa posição, de transformar aquilo em amizade. Na verdade, é difícil
definir, ou mesmo descrever meus verdadeiros sentimentos para com ele:
formavam um amálgama extravagante e heterogêneo ? uma animosidade
petulante que não era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa
parte de temor e uma imensa e inquieta curiosidade. É supérfluo
acrescentar, para o moralista, que Wilson e eu éramos os mais
inseparáveis camaradas.
Foram decerto a anomalia e ambigüidade de nossas relações que jogaram
todos os meus ataques contra ele e, francos ou dissimulados, eram
numerosos ? moldados de ironia ou de troça (a zombaria não causa também
excelentes feridas?) em vez de uma hostilidade mais séria e mais
determinada. Porém meus esforços, neste ponto, não obtinham regularmente
um triunfo perfeito, mesmo quando os planos eram mais engenhosamente
maquinados. É que o meu homônimo tinha em seu caráter muito dessa
austeridade plena de reserva e de calma que, mesmo deliciando-se com a
pungência de suas próprias zombarias, nunca mostra o
calcanhar-de-aquiles e foge absolutamente ao ridículo. Não podia assim
encontrar nele senão um ponto vulnerável: era constituído por um detalhe
físico que, vindo talvez de uma enfermidade de seu organismo, teria
sido poupado por algum outro antagonista menos encarniçado do que eu:
meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que o impedia de jamais
erguer a voz acima de um sussurro muito baixo. E eu não deixava de
tirar, dessa imperfeição, toda a pobre vantagem que estava em meu poder.
Várias eram as represálias de Wilson; tinha, particularmente, esse
gênero de malícia que me perturbava de maneira intolerável. Como tivera,
no início, a sagacidade de descobrir que uma coisa tão insignificante
podia mortificar-me, eis uma questão que jamais pude resolver; mas,
assim que a descobriu, habitualmente me atormentava com isso. Sempre
sentira aversão por meu infeliz nome de família tão deselegante, e por
meu prenome tão vulgar ou mesmo absolutamente plebeu. Essas sílabas eram
um veneno para meus ouvidos e quando, no dia de minha chegada,
apresentou-se na escola um segundo William Wilson, odiei-o pela fato de
ter esse nome e por ser também o de um estranho ? um estranho que seria a
causa de sua dupla repetição, que estaria permanentemente em minha
presença e cujas atividades, na rotina da vida do colégio, seriam muitas
vezes e inevitavelmente confundidas com as minhas, devido a essa
detestável coincidência.
O sentimento de irritação criado por esse acidente tornou-se mais vivo, a
cada circunstância que tendia a focalizar toda a semelhança moral entre
meu rival e mim. Não havia notado ainda senão o fato extraordinário de
sermos da mesma idade; mas via agora que éramos da mesma altura e havia
uma semelhança singular em nossa fisionomia e nossas feições.
Exasperava-me igualmente o rumor que corria sobre nosso parentesco e a
que geralmente se dava crédito, nas classes superiores. Numa palavra,
nada poderia causar-me preocupação mais séria (embora eu ocultasse com o
maior cuidado todo sintoma dessa perturbação) do que uma alusão
qualquer à semelhança entre nós, em relação ao espírito, à pessoa ou ao
nascimento. Mas, na verdade, não tinha razão alguma para acreditar que
essa semelhança (excetuando o fato do parentesco e de tudo o que o
próprio Wilson sabia ver) tivesse jamais sido assunto de comentários ou
mesmo notada por nossos camaradas de classe. Que ele a observasse em
todos os sentidos e com tanta atenção quanto eu próprio, era evidente,
mas que tivesse podido descobrir em tais circunstâncias uma mina tão
rica de contrariedades, não o posso atribuir, como já disse, senão à sua
penetração mais do que comum.
Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo ? gestos
e palavras ? e representava admiravelmente o seu papel. Meu traje era
coisa fácil de copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus
sem dificuldade e, a despeito de seu defeito constitutivo, nem mesmo
minha voz lhe havia escapado. Naturalmente, não tentava os tons
elevados, mas a clave era idêntica e sua voz, apesar de falar baixo,
transformou-se em perfeito eco da minha.
A que ponto esse curioso retrato (porque não posso chamá-lo propriamente
uma caricatura) me atormentava, é o que nem ouso tentar dizer. Não me
restava senão um consolo: é que a imitação, segundo me parecia, era
notada apenas por mim e que eu tinha simplesmente de suportar os
sorrisos misteriosos e estranhamente sarcásticos do meu homônimo.
Satisfeito de haver produzido em meu coração o efeito desejado, parecia
expandir-se em segredo sobre a ferida que me infligira e mostrar um
desdém singular pelos aplausos públicos que os sucessos de sua
engenhosidade lhe teriam facilmente conquistado. Como era possível que
nossos camaradas não adivinhassem o seu desígnio, não vissem sua
realização e não partilhassem de sua alegria zombeteira? Foi isso,
durante muitos meses de inquietação, um mistério insolúvel para mim.
Talvez a gradação de sua cópia não fosse logo percebível, ou antes, eu
devia minha segurança ao ar de maestria do copista, que desdenhava a
letra ? coisa que os espíritos obtusos logo notam numa pintura ? e não
dava senão o perfeito espírito do original, para minha maior admiração e
pesar.
Já falei, várias vezes, do desagradável ar de proteção que assumira para
comigo e da sua freqüente e oficiosa intervenção em minha vontade. Essa
intervenção tomava muitas vezes a forma desagradável de um conselho,
que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado. Eu o recebia com
uma repugnância que crescia com os anos. Contudo, nossa época já
longínqua, quero fazer-lhe a justiça estrita de reconhecer que não me
lembro de uma só vez em que as sugestões de meu rival tivessem pactuado
com os erros e loucuras tão comuns em sua idade, geralmente destituída
de maturidade e experiência; que o seu senso moral, ou seu talento e sua
prudência mundana, era muito mais fino que o meu, e hoje eu seria um
homem melhor se não tivesse sempre recusado os conselhos daqueles
sussurros significativos que me causavam, então, tão-somente ódio
cordial e amargo desprezo.
Por isso tornei-me extremamente rebelde à sua odiosa vigilância e
detestava cada vez mais abertamente o que considerava sua intolerável
arrogância. Já disse que, nos primeiros anos de nossa camaradagem, meus
sentimentos para com ele poderiam facilmente ter-se transformado em
amizade, mas, durante os últimos meses de minha permanência na escola,
embora sua habitual intromissão tivesse diminuído bastante, meus
sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham-se inclinado para o
verdadeiro ódio. Certa ocasião, ele o percebeu, presumo, e desde então
me evitou ou fingiu evitar-me.
Foi pouco mais ou menos na mesma época, se não me falha a memória, numa
discussão violenta que tivemos, na qual ele perdeu sua reserva habitual e
falava e agia com um desembaraço bem diferente à sua natureza, que
descobri, ou imaginei descobrir, em seu tom, sua atitude, enfim, no seu
aspecto em geral, algo que a princípio me fez estremecer e depois me
interessou profundamente, trazendo-me ao espírito visões obscuras de
minha primeira infância lembranças estranhas, confusas, precipitadas, de
um tempo no qual minha memória não nascera ainda. Não poderia definir
melhor a sensação que me dominou, senão dizendo que me era difícil
libertar-me da idéia de já haver conhecido a pessoa que se encontrava
diante de mim, em alguma época muito longínqua, em algum ponto do
passado, mesmo que infinitamente remoto. Contudo, essa sensação
esvaiu-se tão rapidamente como veio; e não a menciono aqui senão para
assinalar o dia do último encontro que tive com o meu singular homônimo.
Com suas inumeráveis subdivisões, a velha e vasta casa tinha vários e
amplos aposentos, que se comunicavam entre si e serviam de dormitório à
maioria dos alunos. Havia contudo (como seria inevitável, num edifício
tão impropriamente planejado) uma porção de cantos e recantos fragmentos
e aberturas da construção, que a engenhosidade do Doutor Bransby
transformara também em dormitórios. Eram porém simples compartimentos,
que só poderiam acomodar uma pessoa. Um desses pequenos quartos era
ocupado por Wilson.
Uma noite, ao fim do meu quinto ano na escola e imediatamente após a
discussão de que falei, aproveitando um momento em que todos dormiam,
levantei-me e, com uma lâmpada na mão, dirigi-me, através de um
labirinto de corredores estreitos, do meu ao quarto do meu rival. Havia
muito planejara pregar-lhe uma peça de mau gosto, mas, até então, sempre
fracassara. Tive pois a idéia de pôr o meu plano em prática e resolvi
fazê-lo sentir toda a força da maldade de que estava possuído. Cheguei à
porta de seu cubículo e entrei sem fazer ruído, deixando à porta a
lâmpada com um abajur. Avancei um passo e escutei o som de sua
respiração tranqüila. Convencido de que dormia profundamente, voltei à
porta, peguei a lâmpada e aproximei-me novamente da cama. Como os
cortinados estavam cerrados, abri-os de leve e lentamente, para a
execução de meu plano, mas uma luz viva caiu em cheio sobre o adormecido
e ao mesmo tempo meus olhos se detiveram sobre sua fisionomia. Olhei; e
um entorpecimento, uma enregelante sensação penetraram instantaneamente
todo o meu ser. Meu coração palpitou, os joelhos vacilaram, toda a
minha alma foi tomada de um horror intolerável e inexplicável.
Arquejando, baixei a lâmpada até quase encostá-la no seu rosto. Seriam…
seriam mesmo as feições de William Wilson? Vi, sem dúvida, que eram os
meus traços, mas tremia como que tomado de um acesso de febre,
imaginando que não o eram. Que haveria pois neles para me confundir a
tal ponto? Eu o contemplava e meu cérebro girava em torno de milhares de
pensamentos incoerentes. Ele não me aparecia assim ? seguramente não
parecia tal ? nas horas ativas de sua vida acordado. O mesmo nome! Os
mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia! E, ainda, essa odiosa e
inexplicável imitação de minhas maneiras, andar, voz e costume!
Estaria, na verdade, nos limites da possibilidade humana que aquilo que
eu via agora fosse o simples resultado desse hábito de imitação
sarcástica? Tomado de horror, estremecendo, apaguei a lâmpada, saí
silenciosamente do quarto e deixei imediatamente o recinto da velha
escola, para nunca mais voltar.
Após um lapso de alguns meses vividos em casa de meus pais, em
ociosidade absoluta, fui mandado para o colégio de Eton. Esse breve
intervalo fora suficiente para enfraquecer em mim a recordação dos
acontecimentos na escola Bransby, ou pelo menos operar uma mudança
notável na natureza dos sentimentos que essas lembranças me causavam. A
realidade, o lado trágico do drama, não existiu mais. Encontrava agora
alguns motivos para duvidar do testemunho de meus sentidos e raramente
me lembrava da aventura sem admirar-me de quão longe pode ir a
credulidade humana, e sem sorrir da prodigiosa força de imaginação que
havia herdado de minha família. E a vida que eu levava em Eton não era
de molde a diminuir essa espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura em
que mergulhei imediatamente e sem reflexão tudo varreu, exceto a
lembrança de minhas horas passadas, absorvendo imediatamente todas as
impressões sólidas e sérias, não deixando em minha lembrança senão as
leviandades de minha existência anterior.
Não tenho, contudo, a intenção de descrever aqui a trajetória de meus
infames desregramentos ? desregramentos que desafiavam as leis e iludiam
a vigilância. Três anos de loucuras, gastos sem proveito, só poderiam
ter-me dado hábitos de vício, enraizados, e haviam aumentado, de maneira
quase anormal, meu desenvolvimento físico. Um dia, após uma semana
inteira de dissipações embrutecedoras, convidei um grupo de estudantes,
dos mais dissolutos, para uma orgia secreta em meu quarto.
Reunimo-nos a uma hora avançada da noite, porque a nossa orgia devia
prolongar-se religiosamente até a manhã. O vinho corria livremente e
outras seduções, mais perigosas, talvez, não haviam sido negligenciadas,
tanto que quando o alvorecer empalidecia o céu, no oriente, nosso
delírio e nossas extravagâncias tinham atingido o auge. Furiosamente
exaltado pelas cartas e pela bebida, insistia em fazer um brinde
estranhamente indecente, quando minha atenção foi subitamente distraída
por uma porta que se abria violentamente e pela voz precipitada de um
criado. Disse que uma pessoa, que parecia ter muita pressa, pedia para
falar comigo no vestíbulo.
Loucamente excitado pelo vinho, essa interrupção causou-me mais prazer
do que surpresa. Precipitei-me, cambaleando, e, após alguns passos,
encontrei-me no vestíbulo da casa. Nessa sala, baixa e estreita, não
havia nenhuma lâmpada e a única luz que ali entrava era a do alvorecer,
muito fraca, que se infiltrava através da janela semicircular. Pisando
na soleira, distingui um rapaz pouco mais ou menos da minha estatura,
vestindo um roupão de casimira branca, talhado à moda do dia, como o que
eu usava naquele momento. A luz fraca me permitiu ver tudo isso; mas os
traços do rosto, não os pude distinguir. Mal entrei, ele se precipitou
para mim e, segurando-me o braço com um gesto imperativo de impaciência,
murmurou em meu ouvido as palavras:
? William Wilson!
Num segundo, tornei-me absolutamente sóbrio.
Havia na maneira do estranho, no tremor nervoso de seu dedo, que erguera
entre meus olhos e a luz, qualquer coisa que me causou um espanto
completo: mas não era isso o que me emocionara de maneira tão violenta, e
sim a importância, a solenidade da admoestação contida na palavra
singular, baixa, sibilante, e, acima de tudo, o caráter, o tom, a clave
dessas poucas sílabas, simples, familiares e, contudo, misteriosamente
sussurradas, que vieram, com mil recordações acumuladas dos dias
passados, abater-se em minha alma como uma descarga elétrica. Antes que
eu pudesse recobrar os sentidos, ele havia desaparecido.
Embora o fato produzisse sem dúvida um efeito muito vivo sobre minha
imaginação desregrada, esse efeito, tão vivo, contudo, se foi em breve
esvaindo. Na verdade, durante várias semanas, vivi entregue a
investigações mais sérias, ou envolvido numa nuvem de mórbida meditação.
Não tentava ocultar a mim mesmo a identidade da singular criatura que
se imiscuía de maneira tão obstinada em minha vida e me fatigava com
seus conselhos oficiosos. Porém, quem era? Quem era esse Wilson? E de
onde vinha? Qual o seu objetivo? Sobre nenhum desses pontos consegui
obter resposta satisfatória ? e constatei somente, em relação a ele, que
um acidente súbito, em sua família, o fizera deixar a escola do Doutor
Bransby na tarde do dia em que eu fugira. Mas, depois de algum tempo,
deixei de pensar nisso e minha atenção foi inteiramente absorvida pela
partida, projetada, para Oxford. Ali, em breve ? a vaidade pródiga de
meus pais permitindo-me levar um alto padrão e entregar-me à vontade ao
luxo, já tão do meu gosto ?, vim a rivalizar em prodigalidade com os
mais orgulhosos herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha.
Estimulado ao vício por semelhantes meios, minha natureza explodiu em
breve com um duplo ardor e na louca embriaguez de minhas devassidões
calquei aos pés os vulgares entraves da decência. Mas seria absurdo
demorar aqui em detalhes de minhas loucuras. Basta dizer que ultrapassei
Herodes em dissipações e que, dando um nome a uma multidão de novos
desvarios, acrescentei um copioso apêndice ao longo catálogo dos vícios
que reinavam então na universidade mais dissoluta da Europa.
Custa a acreditar que eu tivesse decaído a tal ponto, de minha posição
de nobreza, procurando familiarizar-me com os mais vis artifícios do
jogador de profissão e me tornasse um adepto dessa ciência desprezível,
que a praticasse habilmente com o pretexto de aumentar meu rendimento já
enorme, à custa de companheiros cujo espírito era mais fraco. Mas foi o
que aconteceu. E a própria enormidade desse atentado contra os
sentimentos de dignidade e honra era, evidentemente, a principal, se não
a única razão da minha impunidade. Quem, pois, entre meus mais devassos
camaradas, não teria contestado ao mais evidente testemunho de seus
próprios sentidos, a desconfiar de semelhante conduta da parte do
alegre, do franco, generoso William Wilson ? o mais nobre, o mais
liberal dos companheiros de Oxford ?, aquele cujas loucuras, diziam meus
parasitas, eram apenas as loucuras de uma mocidade e de uma imaginação
sem freio, cujos erros não eram senão inimitáveis caprichos, e os vícios
mais negros, uma descuidada e soberba extravagância?
Havia dois anos que eu vivia dessa maneira, quando chegou à universidade
um jovem de nobreza recente, um parvenu, chamado Glendinning ? rico,
diziam, como Herodes Ático e cuja riqueza fora também facilmente
adquirida. Descobri bem depressa que era de inteligência fraca e,
naturalmente, marquei-o como possível vítima de meus talentos.
Convidava-o freqüentemente a jogar e deixava-o ganhar somas
consideráveis, a fim de prendê-lo mais eficazmente na armadilha.
Finalmente, com o meu plano bem estabelecido (procurei-o na intenção
inabalável de que esse encontro seria decisivo), no apartamento de um
dos nossos camaradas, Preston, íntimo igualmente de ambos, porém, que ?
faço-lhe essa justiça ? não tinha a menor desconfiança quanto ao meu
desígnio. A fim de melhor colorir o acontecimento, tive o cuidado de
convidar um grupo de oito ou dez pessoas, tendo o mais rigoroso cuidado
de fazer com que o aparecimento das cartas parecesse inteiramente
acidental e não se fizesse senão sob proposta daquele a quem eu queria
lograr. Para resumir tão vil passagem, digo que não negligenciei nenhuma
das infames astúcias praticadas da maneira mais banal em tais ocasiões e
é de admirar que ainda existam pessoas bastante ingênuas a ponto de
caírem como suas vítimas.
Prolongamos muito a nossa vigília, e já era tarde da noite, quando,
afinal, consegui fazer de Glendinning meu único adversário. O jogo era o
meu favorito: o écarté. Os outros presentes, interessados pelas
proporções de nosso jogo, tinham deixado suas cartas e se reuniam em
torno de nós. como espectadores. O nosso parvenu, que, durante a
primeira parte da noite, eu induzira a beber fartamente, embaralhava,
dava as cartas agora de maneira nervosa, estranha, na qual, pensava eu, a
embriaguez influía de certo modo, porém não explicava inteiramente. Em
muito pouco tempo já se tornara meu devedor de uma grande soma, quando,
depois de beber um grande copo de vinho do Porto, fez justamente o que
eu havia previsto friamente: propôs que dobrássemos a nossa parada, já
absurdamente elevada. Com uma hábil afetação de relutância, e somente
depois que minhas recusas repetidas lhe haviam provocado algumas
palavras ásperas, que deram ao meu consentimento um tom ofendido, acedi
finalmente. O resultado foi o que devia ser: a presa caíra
irremediavelmente na armadilha e em menos de uma hora quadruplicara a
dívida. Havia algum tempo, seu rosto começara a perder o rubor produzido
pelo vinho, mas agora eu percebia, atônito, que sua palidez era
verdadeiramente terrível. Digo atônito, porque tomara sobre Glendinning
informações minuciosas: davam-no como sendo imensamente rico e as somas
que ele perdera até então, embora realmente vastas, não podiam ? pelo
menos eu supunha ? preocupá-lo muito seriamente e ainda menos afetá-lo
de maneira a tal ponto violenta. A idéia que se apresentou mais
naturalmente ao meu espírito foi que ele ficara perturbado pelo vinho
que bebera e, antes para salvaguardar o meu caráter aos olhos de meus
camaradas do que por um motivo de desinteresse, ia insistir
peremptoriamente para interromper o jogo, quando algumas palavras
pronunciadas ao meu lado, entre as pessoas presentes e uma exclamação de
Glendinning, demonstrando o mais completo desespero, fizeram-me
compreender que eu o levara à ruína total, em condições que, tornando-o
objeto da piedade de todos, deveriam tê-lo protegido, mesmo contra os
maus ofícios de um demônio.
Que atitude deveria ter sido então a minha, é difícil dizer. A
lastimável situação de minha vítima lançara sobre nós um ar de tristeza e
constrangimento. Por alguns minutos reinou um silêncio profundo durante
o qual eu sentia, malgrado meu, o rosto a formigar, sob os olhares
ardentes de desprezo e censura que me eram dirigidos pelos menos
endurecidos do grupo. Confessarei, mesmo, que meu coração sentiu-se
instantaneamente aliviado do intolerável peso da angústia, pela súbita e
extraordinária interrupção que sobreveio. As largas e pesadas portas se
escancararam subitamente, com uma impetuosidade tão vigorosa e
violenta, que todas as velas se apagaram como por encanto. Mesmo no
escuro ainda nos foi possível notar que um estranho entrara; um homem
mais ou menos da minha estatura, apertadamente envolvido numa capa.
Contudo, agora, as trevas eram completas e podíamos apenas sentir que
ele estava entre nós. Antes que qualquer dos presentes voltasse a si do
extremo espanto em que nos lançara aquele gesto de violência, ouvimos a
voz do intruso:
? Senhores ? disse ele, numa voz muito baixa, mas distinta,
inesquecível, que atingiu a medula de meus ossos ?, senhores, não
procuro desculpar a minha conduta, por que, agindo assim, não faço mais
do que cumprir um dever. Sem dúvida, não estão informados sobre o
verdadeiro caráter da pessoa que ganhou esta noite uma soma enorme no
écarté, tendo como parceiro Lorde Glendinning. Vou assim propor-lhes um
meio rápido e decisivo de conseguir essas importantíssimas informações.
Examinem, rogo-lhes, sem pressa, o forro do punho de sua manga esquerda e
os pacotinhos que serão encontrados nas algibeiras suficientemente
vastas de seu roupão bordado.
Enquanto o estranho falava, o silêncio era tão profundo, que se teria
ouvido um alfinete cair sobre o tapete. Terminando, ele partiu de
repente, tão bruscamente como entrara. Poderia descrever a minha
impressão? Será preciso dizer que senti todos os horrores dos danados,
no inferno? Decerto, tive pouco tempo para reflexão. Vários braços me
agarraram com violência, reacenderam-se imediatamente as luzes.
Revistaram-me: no forro de minha manga, encontraram todas as figuras
essenciais do écarté e, nos bolsos do meu roupão, um certo número de
baralhos exatamente semelhantes aos que usávamos em nossas noitadas, com
a única exceção de que os meus eram daqueles chamados, tecnicamente,
arrondées: as cartas figuradas ligeiramente convexas nas extremidades
mais estreitas e as sem figuras também imperceptivelmente convexas, nos
lados mais largos. Graças a essa marcação, a vítima quando corta o
baralho ao comprido, como é habitual, dá, inevitavelmente, uma carta
figurada ao adversário, ao passo que o trapaceiro, cortando no sentido
da largura, jamais dará ao outro algo que lhe possa trazer vantagem.
Uma tempestade de revolta me afetaria menos do que o silencioso desdém e a calma sarcástica com que receberam essa descoberta.
? Sr. Wilson ? disse nosso anfitrião, baixando-se para apanhar sob meus
pés uma magnífica capa de pele rara ?, Sr. Wilson, isto lhe pertence.
Fazia frio e, ao sair de meu quarto, eu pusera sobre a roupa que vestira
de manhã uma capa que tirei, ao chegar ao local do jogo.
? Imagino ? disse olhando as dobras do manto com um sorriso amargo ? que
será supérfluo procurar aqui novas provas de sua habilidade. Realmente,
estamos fartos. Espero que compreenda a necessidade de deixar Oxford e,
de qualquer modo, de sair imediatamente de meus aposentos.
Aviltado, humilhado até a poeira, como estava no momento, é provável que
tivesse castigado essa linguagem insultante com violência imediata, se
toda a minha atenção não estivesse, nesse momento, detida por um fato
dos mais surpreendentes. A capa que eu trouxera era de uma pelica
superior ? de uma raridade e de um preço tão extravagantes, que não me
atrevo a dizer. O modelo também era de minha invenção, pois nessas
questões frívolas eu era exigente e levava o dandismo às raias do
absurdo. Por isso, quando Preston me entregou o que apanhara no chão,
junto à porta da sala ? com um espanto quase terror ?, percebi que já
tinha a minha capa sobre o braço onde a colocara sem prestar atenção, e
aquela que agora me davam era uma exata reprodução em todos os detalhes
da minha. A singular criatura que me denunciara de maneira tão
desastrosa estava, lembro-me bem, envolta numa capa e nenhum dos
presentes, exceto eu, usava capa naquela ocasião. Conservei porém uma
certa presença de espírito e recebi a capa que Preston me oferecia,
coloquei-a ? sem que ninguém prestasse atenção ? sobre a minha; saí da
sala com um desafio ameaçador no olhar e nessa manhã mesmo, antes do
alvorecer, fugi precipitadamente de Oxford, em viagem pelo continente,
angustiado de horror e vergonha.
Fugi em vão. Meu destino maldito me perseguiu, triunfante, provando-me
que seu misterioso poder apenas começava. Mal chegara a Paris, tive
outra prova do interesse detestável que esse Wilson tomava pelos meus
negócios. Os anos passaram, e não tive trégua. Miserável! Em Roma, com
que importuna obsequiosidade, com que ternura, o espectro se interpôs
entre mim e a minha ambição! Em Viena… em Berlim!… em Moscou! Na
verdade, em que lugar não tinha eu uma razão amarga para maldizê-lo do
íntimo do meu coração? Tomado de pânico, fugi enfim de sua impenetrável
tirania, como de uma peste até o fim do mundo, fugi, e fugi em vão.
E sempre, sempre interrogando secretamente minha alma, perguntava a mim
mesmo: “Quem é ele? De onde vem? Qual o seu objetivo?” Mas não
encontrava resposta. E analisava então com um cuidado minucioso as
formas, o método e os característicos de sua insolente vigilância. Mas
aí, ainda, não encontrava muita coisa que pudesse servir de base a uma
conjetura. Era verdadeiramente notável o fato de que das inúmeras vezes
em que ele atravessara no meu caminho, recentemente, jamais o fez senão
para frustrar planos ou derrotar ações que, se bem sucedidas, teriam
redundado em amarga decepção. Pobre justificativa, na verdade, para uma
autoridade tão imperiosamente usurpada! Pobre indenização para esses
direitos naturais de livre-arbítrio tão obstinada e ofensivamente
negados!
Fui obrigado a notar que meu algoz, havia longo tempo, mesmo exercendo
escrupulosamente e com hábil destreza a mania de se vestir da mesma
maneira que eu, cada vez que interferira na minha vontade, fizera tudo
de maneira que eu não pudesse ver o seu rosto. Fosse lá quem fosse esse
maldito Wilson, sem dúvida, semelhante mistério era o cúmulo da afetação
e da tolice. Poderia ele supor um instante que, como meu conselheiro de
Eton, destruidor de minha honra em Oxford, aquele que frustrou minha
ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor apaixonado em Nápoles
e, o que ele chamava, erroneamente, a minha avareza, no Egito ? nesse
ser, meu grande inimigo e meu gênio mau, eu não reconhecia o William
Wilson dos meus anos de colégio, o homônimo, o camarada, o rival
execrado e temido do colégio Bransby? Impossível! Mas deixem-me
descrever a terrível cena final do drama.
Até então, eu me submetera sem reação ao seu imperioso domínio. O
sentimento de profundo respeito com o qual me acostumara a considerar o
caráter elevado, a sabedoria majestosa, a onipresença e onipotência
aparentes de Wilson, acrescentados a uma certa sensação de terror que me
inspiravam alguns outros traços de sua natureza e determinados
privilégios, tinham criado em mim a idéia de minha fraqueza absoluta, de
minha impotência, me haviam aconselhado uma submissão sem reservas,
embora cheia de amargura e de repugnância, à sua ditadura arbitrária.
Mas, nesses últimos tempos, abandonara-me inteiramente ao vinho e sua
influência exasperante sobre meu temperamento hereditário tornava-me
cada vez mais relutante a todo controle. Comecei pois a murmurar, a
hesitar, a resistir. E seria simplesmente minha imaginação que me
induzia a crer que a obstinação de meu algoz diminuiria em razão da
minha própria firmeza? É possível, mas em todo caso começava a sentir a
inspiração de uma esperança ardente, e acabei nutrindo, no mais secreto
de meus pensamentos, a sombria, a desesperada resolução de libertar-me
dessa escravidão.
Foi em Roma, durante o carnaval de 18…; encontrava-me num baile à
fantasia, no palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles. Abusara da bebida,
além do habitual, e a atmosfera sufocante dos salões apinhados
irritava-me de maneira insuportável. A dificuldade de abrir caminho
através da multidão contribuiu ainda mais para exasperar o meu humor,
porque eu procurava ansiosamente (não direi com que motivo indigno) a
jovem, alegre e bela esposa do velho e extravagante Di Broglio. Com uma
confiança bastante imprudente, ela me revelara o segredo da fantasia com
que iria ao baile e, como eu acabava de avistá-la de longe, apressei-me
para alcançá-la. Nesse momento, senti uma mão pousar de leve em meu
ombro ? e depois esse inesquecível, profundo e maldito sussurro em meu
ouvido!
Tomado de cólera e frenesi, voltei-me bruscamente para aquele que ousara
me perturbar e segurei-o com violência pelo colete. Wilson vestia,
conforme já esperava, um traje absolutamente semelhante ao meu: capa
espanhola de veludo azul, presa por um cinto carmesim do qual pendia uma
espada. Uma máscara de seda negra cobria-lhe inteiramente o rosto.
? Miserável! ? exclamei com voz rouca de cólera, e cada sílaba que me
escapava era como um combustível acrescentado ao fogo de minha ira. ?
Miserável! Impostor! Vilão maldito! Não seguirás a minha pista… não me
atormentarás até a morte! Segue-me, ou apunhalo-te aí onde estás!
E abri caminho, do salão de baile, para uma pequena antecâmara vizinha, arrastando-o irresistivelmente comigo.
Entrando, atirei-o com fúria para longe de mim. Ele cambaleou, de
encontro à parede. Fechei a porta, com uma imprecação, e ordenei-lhe que
desembainhasse a espada. Wilson hesitou um segundo; depois, com um leve
suspiro, tirou silenciosamente a arma e se pôs em guarda.
O combate foi rápido. Eu estava exasperado, sentia desvarios de toda a
espécie e, num único braço, a energia e o poder de uma multidão. Em
alguns segundos, dominei-o pela força, contra o lambril, e ali, tendo-o à
minha mercê, mergulhei várias vezes, golpe após golpe, a espada em seu
peito, com uma ferocidade de bruto.
Nesse momento, alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar uma
intromissão importuna e voltei-me imediatamente para meu adversário que
expirava. Porém. que ser humano poderá traduzir suficientemente o
espanto, o horror que se apoderaram de mim, ante o espetáculo que se
apresentou aos meus olhos? O curto instante, durante o qual me desviara,
fora suficiente para produzir, aparentemente, uma mudança material nas
disposições do outro extremo da sala. Um vasto espelho ? em minha
perturbação pareceu-me assim, a princípio ? erguia-se no ponto onde
antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para esse
espelho, minha própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de
sangue, adiantou-se ao meu encontro, com um passo fraco e vacilante.
Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário, Wilson,
que diante de mim se contorcia em agonia. Sua máscara e capa jaziam
sobre o soalho, no ponto onde ele as lançara. Não havia um fio de sua
roupa ? nem uma linha em toda a sua figura tão característica e tão
singular ? que não fossem meus: era o absoluto na identidade!
Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras, tanto que
teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quando ele me
disse:
? Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto…
morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e
vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste
absolutamente a ti mesmo.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro
Mostrando postagens com marcador Edgar Allan Poe. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Edgar Allan Poe. Mostrar todas as postagens
sábado, 11 de março de 2017
sexta-feira, 10 de março de 2017
Sombra
Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que
escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Por que de
fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e
muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas
humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém
que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de
reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro. O ano
tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror,
para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais
haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as
negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores
dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de
desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que
então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do
Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do
terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não
me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas
almas, imaginações e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite,
em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes
do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos
achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e
trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras
cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua,
das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o ressentimento e a
lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.
Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo – que era histérico – , e cantávamos as canções de Anacreonte – que são doidas -, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da
Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro
Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo – que era histérico – , e cantávamos as canções de Anacreonte – que são doidas -, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da
Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro
quinta-feira, 9 de março de 2017
Silêncio
Escuta – disse o demônio, pousando a mão sobre a minha cabeça. – O
país de que te falo é um país lúgubre, na Líbia, às margens do rio
Zaire. E ali não há repouso nem silêncio. As águas do rio, amarelas e
insalubres, não correm para o mar, mas palpitam sempre sob o olhar
ardente do Sol, com um movimento convulsivo. De cada lado do rio, sobre
as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto sombrio de
gigantescos nenúfares, que suspiram na solidão, erguendo para o céu os
longos pescoços espectrais e meneando tristemente as cabeças
sempiternas. E do meio deles sai um sussurro confuso, semelhante ao
murmúrio de uma torrente subterrânea. E os nenúfares, voltados uns para
os outros, suspiram na solidão.
E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, – como as vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo não há vento no céu! – e as grandes árvores primitivas oscilam continuamente, com um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas – venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso nem silêncio.
Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade da sua desolação.
De repente apareceu a lua através do nevoeiro fúnebre vinha toda carmesim! e o meu olhar caiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia a borda do Zaire, refletindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio sinistro de uma altura descomunal!
Sobre o seu cume estavam gravadas algumas letras. Caminhei através dos pântanos de nenúfares, até a margem para ler as letras gravadas na pedra; mas não pude decifrá-las. Ia voltar quando a lua brilhou mais viva e mais vermelha; olhando outra vez para o rochedo distingui só caracteres. E esses caracteres diziam: desolação.
Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura majestosa. Pendia-lhe dos ombros a antiga toga romana, cobrindo-se até aos pés. Os contornos da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade porque brilhavam através da escuridão da noite a do nevoeiro. Tinha a fronte alta e pensativa, os olhos profundos e melancólicos. Nas rugas do semblante, liam-se as legendas da desgraça e da fadiga o aborrecimento da humanidade e o amor da solidão. Escondi-me no meio dos nenúfares para ver o que aquele homem fazia ali.
E o homem assentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e espraiou a vista pela soledade, contemplou os arbustos buliçosos e as grandes árvores primitivas; depois, ergueu os olhos para a céu a para a lua carmesim. Eu observava as ações do homem escondido no meio dos nenúfares e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Então o homem desviou os olhos do céu para o rio lúgubre para as águas amarelas do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenúfares; escutou-lhes os suspiros melancólicos e as oscilações murmurantes E eu o espreitava sempre, do meu esconderijo e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Embrenhei-me na profundezas longínquas do pântano, caminhei sobre e as flores dos nenúfares e chamei os hipopótamos que habitavam a espessura do bosque. E os hipopótamos ouviram o meu chamado e vieram os Behemothes até o pé do rochedo e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenúfares, espreitava os movimentos do homem e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Então invoquei os elementos e uma tempestade horrorosa rosa sobreveio. E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade e a chuva caía em torrente sobre a cabeça do homem e as ondas do rio transbordavam e o rio espumava enfurecido e os nenúfares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o trovão ribombava e os raios flamejavam, e o rochedo estremecia.
Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenúfares, o vento e as floresta, o céu e o trovão. E na minha maldição os elementos emudeceram e a lua parou na sua carreira, e o trovão expirou e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram imóveis e as águas tornaram n repousar no seu imenso leito, e as árvores cessaram de se agitar, e os nenúfares não suspiraram mais e na floresta não se tornou a ouvir o mínimo murmúrio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei para os caracteres escritos no rochedo e os caracteres diziam agora: Silêncio.
Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pálido de terror. De repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e pôs o ouvido à escuta. Mas não se ouviu nem uma voz no deserto ilimitado. E os caracteres gravados no rochedo diziam sempre: Silêncio. E o homem estremeceu e fugiu e para tão longe fugiu que jamais o tornei a ver.
Ora, os livros dos magos, os melancólicos livros dos magos encerram belos contos, esplêndidas histórias do céu, da terra e do mar poderosos; dos gênios que têm reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céu sublime. Há muita ciência na palavra das Sibilas. E das florestas sombrias de Dodona saíam outrora oráculos profundos.
Mas jamais se ouviu uma história tão espantosa como esta! Foi o demônio que ma contou, assentado ao um lado, na solidão do túmulo. Quando acabou de falar, desatou a rir e como não pudesse rir com ele, amaldiçoou-me. Então o lince, que vive eternamente no túmulo, saiu do seu esconderijo e veio deitar-se aos pés do demônio, olhando-o fixamente nas pupilas.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro
E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, – como as vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo não há vento no céu! – e as grandes árvores primitivas oscilam continuamente, com um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas – venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso nem silêncio.
Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade da sua desolação.
De repente apareceu a lua através do nevoeiro fúnebre vinha toda carmesim! e o meu olhar caiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia a borda do Zaire, refletindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio sinistro de uma altura descomunal!
Sobre o seu cume estavam gravadas algumas letras. Caminhei através dos pântanos de nenúfares, até a margem para ler as letras gravadas na pedra; mas não pude decifrá-las. Ia voltar quando a lua brilhou mais viva e mais vermelha; olhando outra vez para o rochedo distingui só caracteres. E esses caracteres diziam: desolação.
Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura majestosa. Pendia-lhe dos ombros a antiga toga romana, cobrindo-se até aos pés. Os contornos da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade porque brilhavam através da escuridão da noite a do nevoeiro. Tinha a fronte alta e pensativa, os olhos profundos e melancólicos. Nas rugas do semblante, liam-se as legendas da desgraça e da fadiga o aborrecimento da humanidade e o amor da solidão. Escondi-me no meio dos nenúfares para ver o que aquele homem fazia ali.
E o homem assentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e espraiou a vista pela soledade, contemplou os arbustos buliçosos e as grandes árvores primitivas; depois, ergueu os olhos para a céu a para a lua carmesim. Eu observava as ações do homem escondido no meio dos nenúfares e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Então o homem desviou os olhos do céu para o rio lúgubre para as águas amarelas do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenúfares; escutou-lhes os suspiros melancólicos e as oscilações murmurantes E eu o espreitava sempre, do meu esconderijo e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Embrenhei-me na profundezas longínquas do pântano, caminhei sobre e as flores dos nenúfares e chamei os hipopótamos que habitavam a espessura do bosque. E os hipopótamos ouviram o meu chamado e vieram os Behemothes até o pé do rochedo e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenúfares, espreitava os movimentos do homem e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Então invoquei os elementos e uma tempestade horrorosa rosa sobreveio. E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade e a chuva caía em torrente sobre a cabeça do homem e as ondas do rio transbordavam e o rio espumava enfurecido e os nenúfares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o trovão ribombava e os raios flamejavam, e o rochedo estremecia.
Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenúfares, o vento e as floresta, o céu e o trovão. E na minha maldição os elementos emudeceram e a lua parou na sua carreira, e o trovão expirou e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram imóveis e as águas tornaram n repousar no seu imenso leito, e as árvores cessaram de se agitar, e os nenúfares não suspiraram mais e na floresta não se tornou a ouvir o mínimo murmúrio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei para os caracteres escritos no rochedo e os caracteres diziam agora: Silêncio.
Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pálido de terror. De repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e pôs o ouvido à escuta. Mas não se ouviu nem uma voz no deserto ilimitado. E os caracteres gravados no rochedo diziam sempre: Silêncio. E o homem estremeceu e fugiu e para tão longe fugiu que jamais o tornei a ver.
Ora, os livros dos magos, os melancólicos livros dos magos encerram belos contos, esplêndidas histórias do céu, da terra e do mar poderosos; dos gênios que têm reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céu sublime. Há muita ciência na palavra das Sibilas. E das florestas sombrias de Dodona saíam outrora oráculos profundos.
Mas jamais se ouviu uma história tão espantosa como esta! Foi o demônio que ma contou, assentado ao um lado, na solidão do túmulo. Quando acabou de falar, desatou a rir e como não pudesse rir com ele, amaldiçoou-me. Então o lince, que vive eternamente no túmulo, saiu do seu esconderijo e veio deitar-se aos pés do demônio, olhando-o fixamente nas pupilas.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro
quarta-feira, 8 de março de 2017
O Rei Peste
Os deuses suportam nos reis, e permitem,
as coisas que odeiam em meio à ralé.
BUCKHURST: A Tragédia de Ferrex e Porrex.
Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro,
durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros
pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de
comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então
ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala
duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha
como insígnia a tabuleta dum “Alegre Marinheiro”. embora mal construída,
enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos,
semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na
opinião dos grotescos grupos de freqüentadores ali dentro espalhados,
muito bem adaptada a seu fim.
Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.
O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se
dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era
também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez
centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura
se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era,
porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era
excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros,
substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir
de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e
outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer
efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do
rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar
inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua
fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por
assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente
solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição.
O marujo mais moço era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu
companheiro. Sua estatura não ia além de um metro e vinte. Um par de
pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo pesado e
rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos, de
punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma
tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe
encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de
carne, que lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio
superior descansava sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de
complacente satisfação pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o
dono de lamber seus beiços, de vez em quando. E evidente que ele olhava
seu camarada alto com um sentimento meio de espanto, meio de zombaria,
e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo, parecia o vermelho
sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis. Várias e aventurosas
haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas
cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os
cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de
bolsos vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna
aludida. No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e
seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados, com os cotovelos
apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida
entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a
pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto
deles, estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de
decifrar caracteres escritos – dom considerado então, entre o povo,
pouco menos cabalístico do que a arte de escrever – pudesse, em estrita
justiça, ter sido deixado a cargo dos dois discípulos do mar; mas havia,
para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma
indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois
marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a,
imediatamente na linguagem alegórica do próprio Legs, “correr às bombas,
ferrar todas as velas e correr com o vento em popa”.
Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja
e abotoado seus curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua.
Embora Tarpaulin houvesse, por duas vezes, entrado de chaminé adentro,
pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim com êxito a escapada, e
meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos heróis prontos para
outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção da Escada
de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do “Alegre
Marinheiro”.
Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época
desta dramática estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais
especialmente na metrópole, o espantoso grito de: “Peste!” A cidade
estava em grande parte despovoada, e naqueles horríveis bairros das
vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros,
estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço,
a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à
vontade.
Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as
pessoas proibidas, sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre
solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as enormes barreiras
erguidas às entradas das ruas, nem a perspectiva daquela hedionda morte
que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgraçado a quem
nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as
habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes
noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de
qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se,
sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que
fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca
proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os
riscos e incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com
estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o
período de exílio, a tão insuficiente segurança.
Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que
atribuíam tais fatos à ação de mãos humanas. Os espíritos, os duendes da
peste, os demônios da febre eram, para o povo, os autores das façanhas.
E tamanhas estórias arrepiantes se contavam a toda hora que toda a
massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa
mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam
tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o
vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi
uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o
bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a
disparada em que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin.
Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a perder,
pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para
marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de
madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam
sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de
ébrios, com berros e urros, em breve se perderam naquelas profundezas
intrincadas e pestilentas .
Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem
perdido o senso moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os
passos vacilantes. O ar era frio e nevoento. As pedras do calçamento,
arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem, em meio do capim
alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e tornozelos.
Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais
fétidos e mais deletérios dominavam por toda a parte, e, graças àquela
luz lívida que, mesmo à meia-noite, nunca deixa de emanar duma atmosfera
pestilencial e brumosa, podiam-se perceber, jacentes nos atalhos e
becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carcaças de muitos
saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento mesmo da
perpetração de seu roubo.
Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos
como esses deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e,
especialmente naquela ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff,
teriam ziguezagueado, tão eretos quanto lhes permitia seu estado, sem
temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na
frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e
ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos
índios; e para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado
Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe
enorme vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus
mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulmões
estentóricos.
Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A
cada passo, ou a cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais
fedorento e mais horrível, as veredas mais estreitas e mais intrincadas.
Enormes pedras e vigas que caiam de repente dos telhados desmoronados
demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura prodigiosa das
casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário imediato esforço para
forçar passagem através de freqüentes montões de caliça, não era raro
que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda com
carne.
De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado
e sinistro edifício, um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu
da garganta do excitado Legs e lá de dentro veio uma em rápida sucessão
de ferozes e diabólicos guinchos, semelhantes a risadas. Sem se
intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela ocasião e pelo
lugar, teriam gelado todo o sangue de corações menos irrevogavelmente
incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta, escancarando-a e,
cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio dum montão
de coisas.
A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro;
mas um alçapão, a um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma
longa fileira de adegas, cujas profundezas, reveladas pelo ocasional
rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas do conteúdo
apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia uma
enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de vários
vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo
formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno
desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou
tentar descrevê-los um por um.
Em frente à porta de entrada e em plano acima dos
companheiros estava sentado um personagem que parecia ser o presidente
da mesa. Era descarnado e alto, e Legs sentiu-se confuso ao notar nele
um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas
nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico
para merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa
fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de
um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca,
enrugada, encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus
olhos, bem como os olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa,
tinham aquele humor vítreo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da
cabeça aos pés, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que
lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda duma capa espanhola.
Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias, que ele fazia
ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão
direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado
de bater em algum dos presentes para que cantasse. Defronte dele, e de
costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia não menos
extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de
descrever, não tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal.
Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu
todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-outubro que se
erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu
rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma
peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia,
que já mencionei no caso do presidente, isto é, somente uma feição de
seu rosto era suficientemente destacada para merecer caracterização
especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma
observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali
presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de
fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando na
orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela
fazia, no entanto, todos os esforços para conservar a boca fechada, com
ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e
passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma gola encrespada de
musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a
quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo
tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela
leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas
de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava
em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma
larga e bela mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo
caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos
lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e
cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a
despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia
para um lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão
um tanto quanto equívoca.
Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava
sentado um velho pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas
lhe repousavam sobre os ombros como dois imensos odres de vinho do
Porto. De braços cruzados e uma perna enfaixada posta sobre a mesa,
parecia achar-se com direito a alguma consideração. Evidentemente
orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal, mas
sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de
cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco
dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como estava em
uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles
gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são
ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de
aristocratas falecidos.
Junto dele, e à direita do presidente, via-se um
cavalheiro, com compridas meias brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo
tremelicava de maneira ridícula, num acesso daquilo que Tarpaulin
chamava “os terrores”. Seus queixos, recentemente barbeados, estavam
estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os braços
amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se
muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução
necessária, na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente
idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas
orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se na atmosfera
do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao
rumor das rolhas que espoucavam. Defronte dele, sentava-se o sexto e
último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia
sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada
cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo
ataúde de mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do
sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o
rosto um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços tinham sido
cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância; apesar
disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus
companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete,
formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos
esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num
absoluto espanto de sua própria enormidade.
Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio,
usada como copo. Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma
corda amarrada numa das pernas e presa a uma argola no forro. A outra
perna, sem nenhuma amarra, saltava do corpo em angulo reto, fazendo
flutuar e girar toda a carcaça desconjuntada e chocalhante, ao sabor de
qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O crânio daquela
hedionda coisa continha certa quantidade de carvão em brasa, que lançava
uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes e outras
mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e
contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se
projetasse na rua.
À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais
extraordinários adornos, nossos dois marujos não se conduziram com
aquele grau de decoro que era de esperar. Legs, encostando-se à parede
junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda mais baixo do
que de costume e arregalou os olhos até mais não poder, quanto Hugh
Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da mesa e
dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea
gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.
Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão
excessivamente grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a
graça para os intrusos, fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a
cabeça empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os pelos braços e
levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes tinham colocado,
enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs nenhuma
resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo
que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da
cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha
ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um
crânio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas
relações. Diante de tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde
mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias conseqüências poderiam
ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o bastão na mesa,
distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:
– É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.
– Pare com isso! – interrompeu Legs, com toda a seriedade.
Cale essa boca, digo- lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e
que estão fazendo aqui, com essas farpelas de diabos sujos e bebendo a
boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado camarada Will
Wimble, o cangalheiro!
À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a
esquipática assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e
sucessivos guinchos ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a
atenção dos marinheiros. O presidente, porém, foi primeiro a retomar sua
compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade,
recomeçou:
– De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade
razoável da parte de hóspedes tão ilustres, embora não convidados.
Ficai, pois, sabendo que, nestes domínios, sou o monarca e governo, com
indivisa autoridade, com o título de “Rei Peste I.” Esta sala, que
supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que
não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta noite,
aos nossos reais ouvidos… esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso
palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de
natureza sagrada e superior.
A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa
Sereníssima Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem
todos à nossa família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos
títulos de: “Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero”, “Sua Graça o Duque
Pest- Ilencial”, “Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso” e “Sua Serena Alteza a
Arquiduquesa Ana-Peste”.
Quanto à vossa pergunta – continuou ele -, a respeito do
que nos trás aqui reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que,
concerne e concerne exclusivamente, ao nosso próprio e particular
interesse e não tem importância para ninguém mais que não nós mesmos.
Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de hóspedes e
estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos entanto,
que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada
investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o
indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses
inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e licores
desta formosa metrópole. Assim procedemos não só para melhorar nossa
própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana
sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e
cujo nome é “Morte”.
– Cujo nome é Davi Jones! – exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.
– Lacaio profanador! – exclamou o presidente, voltando
agora para o digno Hugh. – Miserável e execrando profanador. Dissemos
que, em consideração àqueles direitos que, mesmo na tua imunda pessoa,
não nos sentimos com inclinação para violar, condescendemos em responder
às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações. Contudo, tendo em vista a
vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos, acreditamos ser
de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de Black
Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de
joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou
permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se
acordo com vossos respectivos gostos pessoais.
– Será coisa de absoluta impossibilidade – replicou Legs, a
quem a imponência e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente
inspirado alguns sentimentos de respeito, e que se levantara, ficando de
pé junto da mesa, enquanto aquele falava.
– Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente
impossível arrumar no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor
que vossa Majestade acaba de mencionar. Não falando das mercadorias
colocadas esta manhã a bordo para servir de lastro, e não mencionando as
várias cervejas e licores embarcados esta noite em vários portos,
tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e
devidamente paga na taberna do “Alegre Marinheiro”. De modo que há de
Vossa Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada,
pois não posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito
menos um trago dessa repugnante água-de-porão que responde ao nome de
Black Strap.
– Pare com isso! – interrompeu Tarpaulin, espantado não só
pelo tamanho do discurso de seu companheiro como pela natureza de sua
recusa. – Pare com isso, seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare
com esse palavreado! O meu casco está ainda leve, embora, confesse-o,
esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto à estória de sua
parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de
arrumá-la eu mesmo no porão, mas…
– Este modo de proceder – interferiu o presidente – não
está de modo algum em acordo com os termos da multa ou sentença que é de
natureza média e não pode ser alterada nem apelada. As condições que
impusemos devem ser cumpridas à risca, e isto sem um instante de
hesitação… sem o quê, decretamos que sejais amarrados, pescoços e
calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de
cerveja-de-outubro!
– Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita!
decreto glorioso! A condenação mais digna, mais irrepreensível,
sagrada! – gritaram todos os membros da família Peste ao mesmo tempo.
O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho
gotoso soprava, como um par de foles; a dona da mortalha de cambraia
movia o nariz para um lado para o outro; o cavalheiro de ceroulas de
algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário ofegava como um peixe
agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais, arregalando os olhos
para cima.
– Oh, uh, uh! – ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a
excitação geral. – Uh, uh, … Uh, uh, uh… Estava eu dizendo quando aqui o
Sr. Rei Peste veio meter seu bedelho, que a respeito da questão de dois
ou três galões mais ou menos de Black Strap era uma bagatela para um
barco sólido como eu que não está sobrecarregado; e quando se tratar de
beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me pôr de joelhos
diante dessa horrenda majestade aqui presente, que eu conheço tão bem
como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim Hurlygurly, o
palhaço!… Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha
compreensão.
Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.
– Traição! – gritou Sua Majestade o Rei Peste I.
– Traição! – disse o homenzinho gotoso.
– Traição! – esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.
– Traição! – murmurou o homem dos queixos amarrados.
– Traição! – grunhiu o sujeito do ataúde.
– Traição, traição! – berrou Sua Majestade, a mulher da
bocarra. E, agarrando o infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o
qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e
deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerimônia no imenso barril
aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para cá, durante
alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu afinal
no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado
seus esforços de safar-se.
Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de
seu camarada. Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs
deixou cair a tampa do alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o
meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto que pendia sobre a
mesa, com tamanha força e vontade que o fez que conseguiu fazer saltar
os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros
lampejos de luz dentro da sala.
Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a
pipa fatal cheia de cerveja-de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a,
num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de licor tão impetuoso,
violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de parede a
parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes
rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na
chaminé da lareira… e as damas caíram com ataques histéricos. Montes de
artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se,
numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-se,
desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques
afogou-se imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão… e o vitorioso
Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário,
arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy,
seguido, a bom pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado
três ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a
Arquiduquesa Ana-Peste.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Alguns Textos
Extraído do site Alguns Textos
terça-feira, 7 de março de 2017
A Queda da Casa de Usher
Durante todo aquele triste, escuro e silencioso dia outonal, com o
céu encoberto por nuvens baixas e opressivas, estive percorrendo
sozinho, a cavalo, uma região rural singularmente deserta, até que enfim
avistei, com as primeiras sombras da noite , a melancólica Casa de
Usher. Não sei por quê, mas, assim que entrevi a construção, um
sentimento de intolerável tristeza apoderou-se de meu espírito. Digo
intolerável porque essa impressão não era suavizada por qualquer
sensação meio prazenteira, porque poética, com que a mente geralmente
recebe até mesmo as mais sombrias imagens naturais de desolação e de
terror. Observei a paisagem à minha frente: a casa simples e a
simplicidade do aspecto da propriedade, as paredes frias, as janelas
semelhando órbitas vazias, os poucos canteiros com ervas daninhas e
alguns troncos esbranquiçados de árvores apodrecidas ? e senti na alma
uma depressão profunda que não posso comparar a nenhuma sensação terrena
senão ao que experimenta, ao despertar, o viciado em ópio: o amargo
retorno à vida cotidiana, o terrível descair de um véu. Havia um frio,
uma prostração, uma sensação de repugnância, uma irrecuperável aflição
de pensamento que nenhum excitamento da imaginação conseguiria forçar a
transformar-se em algo sublime. Que era, parei para pensar, que era que
tanto em perturbava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério
completamente insolúvel, e eu não conseguia controlar as sombrias
imagens que me enchiam a cabeça enquanto refletia isso. Fui forçado a
socorrer-me da conclusão nada satisfatória de que existem, sem dúvida,
combinações de objetos naturais muito simples, que têm o poder de nos
afetar assim, embora a análise desse poder se situe em considerações
além de nossa perspicácia. Era possível, pensei, que um mero arranjo
diferente nos pormenores da cena, dos detalhes do quadro, bastasse para
modificar, ou talvez, parar suprimir sua capacidade de provocar
impressões aflitivas. Com essa idéia na cabeça, guiei o cavalo até a
margem íngreme de um fosso negro e sinistro cujas águas paradas
refulgiam junto a casa e contemplei, com um arrepio ainda mais forte do
que antes, a imagem invertida e modificada dos arbusto cinzentos, dos
lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.
Apesar disso, era nessa desolada mansão que eu tencionava passar algumas semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia sido um de meus joviais amigos de infância, mas muitos anos tinham se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, no entanto, que me chegara recentemente numa parte distante do país ? uma carta dele ? exigia pela insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela agitação nervosa. O remetente falava de aguda doença física, de opressiva perturbação mental e do intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia, alguma alívio para sua doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas foram ditas e o manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me qualquer hesitação e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda considerava como um convite muito estranho.
Apesar de, quando crianças, termos sido companheiros íntimos, eu na verdade conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu sabia, no entanto, que sua família, muito antiga, distinguia-se havia muito tempo pela peculiar sensibilidade de temperamento, demonstrada ao longo de muitos séculos em notáveis obras de arte e que ultimamente se manifestava em repetidos atos de generosa e discreta caridade e também na apaixonada devoção pela complexidade da ciência musical, talvez ainda mais do que por suas belezas naturais e fáceis de reconhecer. Fiquei sabendo também de um fato incrível: o tronco da linhagem dos Usher, embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer ramo duradouro. Em outras palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta e assim continuava, com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia entre o aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a possível influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes ? era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao longo dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original da propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a família quanto para a mansão da família.
Eu disse que o único efeito da minha experiência um tanto infantil de olhar para o fosso havia sido aprofundar aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei consciência do rápido aumento de minha superstição (por que não usar esse termo?), isso serviu principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei disso há muito tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E pode ter sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no fosso para a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão estranha, de fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente acreditei que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial, própria do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar do céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e lívido.
Afastando do espírito o que devia ser um sonho, examinei mais atentamente o aspecto real do edifício. Sua característica principal parecia ser a extrema antigüidade. Fora grande a descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas nada disso indicava grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha desmoronado, mas parecia haver um profundo contraste entre o encaixe ainda perfeito das partes e as péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito a enganosa integridade de antigas peças de madeira que apodreceram por longos anos em algum porão esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior. Afora esse indício de grande decadência, porém, a construção não mostrava nenhum sinal de falta de segurança. Talvez o olho de um observador mais atento conseguisse descobrir uma fenda quase imperceptível que riscava a frente do edifício desde
o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.
Observando tudo isso, atravessei a cavalo o curto carreiro que levava até a casa. Um cavalariço levou minha montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um criado de andar furtivo conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e tortuosas, até o gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho contribuíam, não sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os objetos à minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam quando eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado desde a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família. Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa. Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me levou até a presença de seu patrão.
Achei-me numa sala muito ampla e alta. As janelas, compridas, estreitas e pontudas, tinham peitoris tão afastados do assoalho de carvalho negro que era impossível alcança-los. Fracos raios de luz avermelhada penetravam pelas vidraças guarnecidas com rótulas, só conseguindo tornar visíveis os objetos próximos mais volumosos. O Olhar, porém, lutava em vão para perceber os cantos mais distantes da sala ou os recessos do forro em abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias cortinas pendiam das paredes. O mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e gasto. Os muitos livros e instrumentos musicais que jaziam dispersos não conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Uma ar de severo, profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as coisas e impregnava a tudo.
Assim que entrei, Usher levantou-se do sofá onde estava deitado ao comprido e cumprimentou-me com calorosa vivacidade, na qual havia muito, de inicio julguei, de cordialidade forçada, do esforço constrangido de um homem de sociedade entediado. Mas, olhando seu rosto, convenci-me de sua perfeita sinceridade. Sentamos e, por alguns momentos, como ele não falava nada, fiquei olhando-o com um sentimento misto de piedade e espanto. Com toda a certeza, nenhum homem jamais se transformara tão terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick Usher! Só com muita dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de mim era o mesmo companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham sido notáveis: tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia. Todos esses traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte combinavam-se num aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que cheguei a duvidar de que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o brilho agora sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me aterravam. O cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por causa da textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer idéia de simples humanidade.
Fiquei abalado ao perceber logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência, e logo descobri que isso se devia a um série de fracos e inúteis esforços para dominar tremor freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava preparado para encontrar algo assim, não só por sua carta, mas também pela lembrança de certos traços juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado físico e de seu temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo. A voz variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor parecia tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão, para a abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada, gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de excitação.
Foi assim que ele se referiu ao objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me ver e do alívio que esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por algum tempo do que achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal de família e de nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar remédio; mera perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia passar logo. A doença se manifestava numa série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar talvez de que tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele sofria, e muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido alimento; não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de todas as flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos e só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.
Compreendi que ele estava escravizado por uma espécie anormal de terror.
– Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer nesta loucura lamentável. Assim, assim e de nenhuma outra forma é que vou me perder. Abomino os fatos do futuro, não em si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço diante da idéia de qualquer incidente, até mesmo o mais trivial, que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, na verdade, aversão pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror. Neste deplorável estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará um momento em que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na luta com o fantasma sinistro do MEDO.
Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas, outro traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas impressões supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos anos, não se aventurava a sair… a uma influência, cuja suposta força foi narrada em termos vagos demais para reproduzir aqui… influência que alguns detalhes da matéria e da forma da mansão familiar tinham, às custas de longo sofrimento, conseguindo exercer sobre seu espírito… efeito físico que as paredes e torres cinzentas e o sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado por exercer sobre o moral de sua existência.
Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte do desalento que sofria talvez tivesse origem mais natural e bem mais palpável: na séria e prolongada doença (na verdade, na morte evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua única companheira por longos anos, sua única e última parenta nesta terra.
– A morte dela ? disse ele, com amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele, fraco e sem esperanças) o último representante da antiga raça dos Usher.
Enquanto falava, Lady Madeline (pois era assim que se chamava) passou pela parte mais distante do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com profunda surpresa e uma ponta de medo ? e, no entanto, não encontrava explicação para esses sentimentos. Uma sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia com os olhos seus passos. Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas mãos, e só pude perceber que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta dos dedos magros, pelos quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.
A doença de Lady Madeline vinha desafiando, por muito tempo, a habilidade dos médicos. Apatia permanente, progressivo enfraquecimento físico e crises freqüentes, mas passageiras, caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico incomum. Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça, pelo menos com vida.
No decorrer dos dias seguintes, seu nome não foi mencionado por Usher ou por mim. Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me revelando os recessos mais íntimos de seu espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.
Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que passei a sós como o chefe da Casa de Usher. Mas nunca conseguiria dar uma idéia do caráter exato dos estudos ou das ocupações em que ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealidade excitada e altamente desequilibrada lançava um brilho sulfuroso sobre todas as coisas. Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha alteração e amplificação da romântica melodia da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas em que extravasava sua elaborada fantasia e que se metamorfoseavam, pincelada por pincelada, até atingir uma indefinição que me causava estremecimentos ainda mais emocionantes, pois eu não sabia por que estremecia ? quanto a essas pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens diante dos olhos) em vão me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena parte, passível de ser traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema simplicidade e crueza do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, na situação em que então em encontrava, dessas puras abstrações que o hipocondríaco conseguia projetar nas suas telas surgia um terror intenso e intolerável, assombro que nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida brilhantes) de Fuseli, mas ainda assim concretas demais.
Uma das criações fantasmagóricas de meu amigo em que esse espírito abstrato não era tão rígido pode ser descrita, ainda que pobremente, em palavras. Era um quadro pequeno, representando o interior de uma câmara ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem qualquer interrupção ou adornos. Certos detalhes do desenho conseguiam dar muito bem a idéia de que essa escavação ficava a uma extrema profundidade, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer abertura em toda a sua vasta extensão nem se percebiam tochas ou qualquer outra fonte de luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos raios jorrava, tudo banhando num esplendor cadavérico e antinatural.
Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo, que tornava intolerável qualquer música para esse sofredor, com exceção de certos efeitos de instrumentos de cordas. Foram, talvez, os estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto nas notas quanto nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes acompanhava a música com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e imperturbável concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos momentos de maior excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma dessas rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque, na corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente altiva sobre seu trono. Os versos, intitulados “O Palácio Assombrado”, eram quase exatamente assim:
I
No mais verde de nosso vales,
Por bons anjos habitado,
Outrora um belo e rico palácio,
Radiante palácio, se erguia.
Nos domínios do rei Pensamento,
Lá estava ele!
Nunca serafim algum abriu as asas
Sobre tão bela obra.
II
Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,
Em seus telhados flutuavam, ondulando
(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos
De antigamente)
E toda suave brisa que brincava,
Naqueles doces dias,
Pelos muros pálidos e engalanados,
Um sublime perfume desprendia.
III
Quem passava por esse vale feliz
Por duas janelas luminosas via
Espíritos deslizando, musicais,
Ao som de alaúde bem afinado,
Em volta de um tronco, onde sentava-se
(Porfirogênito (1)!),
Na grandeza de sua glória muito justa,
O senhor desse reinado.
IV
Pela bela porta do palácio
Brilhante com pérolas e rubis,
Ia passando, passando, passando,
E sempre mais cintilando,
Uma tropa de Ecos cujo doce dever
Era apenas cantar
Com vozes de insuperável beleza,
A viva sabedoria do rei.
V
Mas vultos maus, trajados de luto,
Atacaram o alto reino do monarca;
(Ah, choremos, pois nunca mais
O dia vai nascer para ele, o desolado!)
E, em volta do palácio, a glória
Que brilhava e florescia
Não passa agora de mal lembrada história
Dos velhos tempos sepultados.
VI
E quem passa agora pelo vale,
Pelas janelas rubras vê
Enormes formas que fantásticas se movem,
Ao som de melodia discordante;
Enquanto isso, como rio terrível,
Pela pálida porta se precipita
Para sempre uma hedionda multidão
Que gargalha, mas não mais sorri.
Lembro-me bem de que as sugestões despertadas pela balada nos levaram a uma linha de pensamento em que se tornou manifesta uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens (2) já pensaram desse modo), mas devido à insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em termo gerais, afirmava que todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação desordenada de Usher, essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e chegava, sob certos aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro palavras para expressar toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de sua convicção. Tal crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com as pedras cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa sensibilidade eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e na ordem com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que as cobriam e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo, na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas paradas do fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia ele (e me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas perturbadora e terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua família e que fizera dele, como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas opiniões dispensam comentário e não farei nenhum.
Nossos livros ? os livros que durante anos constituíram grande parte da existência mental do doente ? estavam , como se pode supor, em harmonia absoluta com esse caráter fantasmagórico. Lemos juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a epístola La Chartreuse, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de Swendenborg; Viagem subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de Robert Flud, de Jean D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis, de Tieck; e Cidade do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano Eymerico de Gerona; e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos sátiros africanos e mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante horas. Seu maior prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em gótico in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae.
Eu não podia deixar de pensar no estranho ritual descrito nesse livro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.
A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório. Depois de colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar de descanso. A câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo que nossas tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram examinar) era pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande profundidade, exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de dormir. Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as piores finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão e todo o interior da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido igualmente protegida. Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som incrivelmente agudo e áspero.
Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar, abrimos parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto da morta. A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e Usher, adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e a falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível sempre existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo sobre a morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que assim levara ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as doenças de natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio e no rosto e uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte. Recolocamos e parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro, voltamos abatidos para os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores da mansão.
Então, passados alguns dias de amarga tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos sintomas da perturbação mental de meu amigo. Seu modo de ser habitual desapareceu. Suas ocupações diárias eram negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava a esmo de sala em sala, com passos apressados e irregulares. A palidez de seu rosto assumiu, se isso é possível, um tom ainda mais cadavérico, mas a luminosidade de seus olhos dissipou-se completamente. Não se ouvia mais o tom áspero de sua voz, como às vezes sucedia antes, e um trêmulo balbucio, como se estivesse tomado de horror extremo, passou a caracterizar o seu modo de falar. Houve momentos, na verdade, em que pensei que sua mente sempre agitada estava em luta com algum segredo opressivo, empenhando-se em reunir coragem para contá-lo. Outras vezes era eu levado a atribuir tudo aquilo à inexplicável confusão da loucura, pois o via fitar o vazio durante horas, numa atitude da mais profunda atenção, como se estivesse ouvindo algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me causasse terror e me contaminasse. Senti-me aos poucos, inexoravelmente, invadido pela estranha influência de suas fantásticas mas impressionantes superstições.
Foi especialmente ao me deitar, já tarde da noite, sete ou oito dias depois de colocarmos o corpo de Lady Madeline na câmara, que percebi toda a força de tais sentimentos. O sono não se aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se lentamente. Lutei para controlar o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por acreditar que muito, senão tudo o que estava sentindo, se devia à perturbadora influência da soturna mobília do aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas que, movidas pelo sopro de uma tempestade que se formava, oscilavam de modo irregular nas paredes e roçavam inquietas pelos adornos do leito. Mas meus esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável aos poucos tomou conta de meu corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio coração o íncubo de uma comoção inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação com um arquejo e um sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o olhar a escuridão do aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez por um instinto que me aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas pausas da tempestade, a longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado por forte sentimento de horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de suportar, vesti-me rapidamente (pois senti que seria impossível dormir naquela noite) e tentei livrar-me, caminhando de um lado para outro pelo aposento, do estado penoso em que me achava.
Logo depois de iniciar as idas e vindas, um leve ruído de passos numa escada próxima me chamou a atenção. Logo reconheci que era Usher. No instante seguinte, ele bateu de leve em minha porta e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava, como sempre cadavérico, mas além disso havia uma espécie de riso louco em seus olhos, e, e, seu modo de proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto me aterrou, mas qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante tanto tempo e acolhi sua presença com grande alívio.
– E você não o viu? ? perguntou ele de repente, depois de olhar em volta por alguns momentos, sem silêncio. ? Não o viu? Mas espere! Você vai ver.
Assim dizendo ? e enquanto protegia cuidadosamente o lampião ? correu para uma das janelas e a escancarou para a tempestade.
A impetuosa fúria das rajadas de vento quase nos levantou do chão. Era na verdade uma noite tempestuosa, mas ainda assim bela e espantosamente singular no seu terror e perfeição. Aparentemente, um redemoinho juntara todas as suas forças ao nosso redor pois ocorriam freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a extrema densidade das nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da mansão) não nos impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de todos os pontos, chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe. Digo que nem mesmo a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto, embora não pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito de uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente luminosa e perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.
– Você não deve… não pode ficar olhando para isso! ? eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. ? Essas manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível.
O volume antigo que peguei era o Mad Trist (Assembléia do loucos) de Sir Launcelot Canning. Disse que era um dos favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a sério, pois, na verdade, sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que pudesse interessar à idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o único livro à mão ? e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações mentais está cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de imaginação que eu ia ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou parecia ouvir a leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.
E Ethereld, que tinha por natureza coração audaz e agora se sentia muito forte, graças ao vigor do vinho que havia bebido, não gastou mais tempo em discutir com o eremita, que em verdade tinha caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva nos ombros e temendo que caísse a tempestade, levantou a maça e, com vários golpes, logo abriu espaço nas tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro; brandindo-a com firmeza, quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira que o eco desse ruído seco e oco alarmou toda a floresta.
Ao terminar esta frase, assustei-me e parei por um momento, pois em parecia (embora logo concluísse que estava sendo iludido por minha excitada imaginação), me parecia que, de algum ponto remoto da mansão, chegava indistintamente a meus ouvidos algo que, por sua exata semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo e abafado) do ranger e estalar que Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era, sem dúvida, apenas a coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio do bater dos caixilhos das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som nada tinha, por certo, que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a história:
Mas o bom paladino Ethelred, entrando agora pela porta, ficou dolorosamente enraivecido e surpreendido por não encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas sim, em seu lugar, uma dragão coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com língua de fogo, que guardava um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a muralha pendia um escudo de bronze reluzente onde estava escrita a legenda:
Quem aqui penetrar, conquistador será;
Quem o dragão matar, o escudo ganhará.
E Ethelred levantou a maça e golpeou a cabeça do dragão, que caiu a seus pés, exalando o pestilento suspiro com um guincho tão horrível, áspero e penetrante que Ethelred teve de tapar os ouvidos com as mãos para suportar aquele terrível som, como jamais tinha ouvido antes.
Aqui, outra vez parei abruptamente, agora com a sensação de tremenda surpresa, pois não podia haver qualquer dúvida de que, desta vez, ouvi realmente (embora fosse impossível dizer de onde provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente distante, mas áspero, prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia imaginava como o guincho do dragão descrito pelo romancista.
Oprimido, como eu naturalmente estava, diante dessa Segunda e tão extraordinária coincidência, por mil sensações conflitantes, nas quais predominavam a perplexidade e o extremo terror, consegui ainda manter suficiente presença de espírito para não aguçar, com qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em questão, embora, sem dúvida, uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos minutos em seu rosto. Sentado diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até ficar de frente para a porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente seu rosto, apesar de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse murmurando baixinho. Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido, porque o olho que via de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu corpo também desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um balanço suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso, voltei para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:
E agora o paladino, tendo escapado à terrível fúria do dragão e lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encantamento que sobre ele pesava, afastou a carcaça do caminho e valorosamente avançou pelo chão de prata do castelo na direção da parede em que pendia o escudo, o qual, na verdade, não esperou que ele chegasse até perto, caindo-lhe aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e retumbante estrondo.
Nem bem essas palavras me passaram pelos lábios, ouvi distintamente como se um pesado escudo de bronze de fato tivesse caído, naquele momento, sobre um chão de prata ? uma reverberação nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de aparentemente abafada. Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o movimento regular de balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante de si e todo o seu rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o ombro com a mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso doentio brincou em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença. Inclinando-me sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas palavras.
– Não ouve, agora?… Sim, estou ouvindo e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos, muitos minutos, muitas horas, muitos dias, venho ouvindo… e no entanto não tive a coragem… Oh, pobre de mim, miserável infeliz!… não tive coragem… não tive coragem de falar! Nós a enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram aguçados? Agora lhe digo que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-os… há muitos, muitos dias… mas não tive coragem… não tive coragem de falar! E agora… esta noite… Ethelred… ha! há!… o rompimento da porta do eremita e o grito de morte do dragão e clangor do escudo!… Seria melhor dizer o destroçar do caixão e o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas de cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar agora mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ? Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!
Como se a energia sobre-humana de suas palavras produzisse a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a qual apontava foi abrindo lentamente, nesse instante, suas mandíbulas negras e pesadas. Havia sido obra do vento furioso ? mas além da porta estava de fato a figura alta e amortalhada de Lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu corpo emagrecido. Por um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral. Depois, com um gemido baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em sua violenta e agora final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima dos terrores que tinha previsto.
Fugi aterrorizado daquele quarto e daquela mansão. A tempestade ainda soprava com toda a fúria lá fora, quando atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o caminho uma luz fantástica, e me virei para ver de onde podia provir luminosidade tão estranha, pois atrás de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação vinha da lua cheia e cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora vivamente através daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que descia em ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda foi se alargando rapidamente… soprou uma feroz rajada de vento… O círculo inteiro do satélite tornou-se visível aos meus olhos… Meu cérebro vacilou quando vi aquelas sólidas paredes desmoronarem… ouviu-se um longo e desordenado estrondo, como o retumbar de mil cataratas… e o fosso fétido e profundo, a meus pés, fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher.
Edgar Allan Poe
Extraido do site Nox in Vitro
—
(1) Porfirogênito: Significa, em grego, “nascido na púrpura”. Dizia-se dos filhos dos antigos imperadores do Oriente nascidos durante o reinado do pai.
(2) Watson, Dr. Percival, Spallanzani e especialmente o Bispo de Llandaff. Ver Chemical essays, v.V. [Richard Watson (1737 ? 1816), químico inglês e bispo de Llandaff. James Gates Percival (1795 ? 1856), erudito norte-americano. Lazzaro Spallanzani (1729 ? 1799), naturalista Italiano.]
(3) Jean Baptiste Louis Gresset (1709 ? 1777), poeta e dramaturgo francês; Niccolò Maquiavel (1469 ? 1527), político e escritor italiano; Emanuel Swedenborg (1688 ? 1772), cientista e filósofo sueco; Ludvig Holberg (1684 ? 1754), escritor dinamarquês; Robert Flud (1574 ? 1637), médico inglês; Jean D`Indaginé é a grafia francesa para Joannes Indagine, pseudônimo de Johann von Hagen (séc XVI), escritor alemão; Marin Cureau De la Chambre (1596 ? 1669) médico francês; Ludwig Tieck (1773 ? 1853), escritor alemão; Tommanso Campanella (1568 ? 1639), filósofo italiano; Nicolás Eymerico (1320 ? 1399), teólogo espanhol; Pomponius Mela (séc. I d.C.), geógrafo Latino.
Apesar disso, era nessa desolada mansão que eu tencionava passar algumas semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia sido um de meus joviais amigos de infância, mas muitos anos tinham se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, no entanto, que me chegara recentemente numa parte distante do país ? uma carta dele ? exigia pela insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela agitação nervosa. O remetente falava de aguda doença física, de opressiva perturbação mental e do intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia, alguma alívio para sua doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas foram ditas e o manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me qualquer hesitação e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda considerava como um convite muito estranho.
Apesar de, quando crianças, termos sido companheiros íntimos, eu na verdade conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu sabia, no entanto, que sua família, muito antiga, distinguia-se havia muito tempo pela peculiar sensibilidade de temperamento, demonstrada ao longo de muitos séculos em notáveis obras de arte e que ultimamente se manifestava em repetidos atos de generosa e discreta caridade e também na apaixonada devoção pela complexidade da ciência musical, talvez ainda mais do que por suas belezas naturais e fáceis de reconhecer. Fiquei sabendo também de um fato incrível: o tronco da linhagem dos Usher, embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer ramo duradouro. Em outras palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta e assim continuava, com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia entre o aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a possível influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes ? era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao longo dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original da propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a família quanto para a mansão da família.
Eu disse que o único efeito da minha experiência um tanto infantil de olhar para o fosso havia sido aprofundar aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei consciência do rápido aumento de minha superstição (por que não usar esse termo?), isso serviu principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei disso há muito tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E pode ter sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no fosso para a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão estranha, de fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente acreditei que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial, própria do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar do céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e lívido.
Afastando do espírito o que devia ser um sonho, examinei mais atentamente o aspecto real do edifício. Sua característica principal parecia ser a extrema antigüidade. Fora grande a descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas nada disso indicava grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha desmoronado, mas parecia haver um profundo contraste entre o encaixe ainda perfeito das partes e as péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito a enganosa integridade de antigas peças de madeira que apodreceram por longos anos em algum porão esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior. Afora esse indício de grande decadência, porém, a construção não mostrava nenhum sinal de falta de segurança. Talvez o olho de um observador mais atento conseguisse descobrir uma fenda quase imperceptível que riscava a frente do edifício desde
o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.
Observando tudo isso, atravessei a cavalo o curto carreiro que levava até a casa. Um cavalariço levou minha montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um criado de andar furtivo conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e tortuosas, até o gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho contribuíam, não sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os objetos à minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam quando eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado desde a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família. Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa. Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me levou até a presença de seu patrão.
Achei-me numa sala muito ampla e alta. As janelas, compridas, estreitas e pontudas, tinham peitoris tão afastados do assoalho de carvalho negro que era impossível alcança-los. Fracos raios de luz avermelhada penetravam pelas vidraças guarnecidas com rótulas, só conseguindo tornar visíveis os objetos próximos mais volumosos. O Olhar, porém, lutava em vão para perceber os cantos mais distantes da sala ou os recessos do forro em abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias cortinas pendiam das paredes. O mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e gasto. Os muitos livros e instrumentos musicais que jaziam dispersos não conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Uma ar de severo, profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as coisas e impregnava a tudo.
Assim que entrei, Usher levantou-se do sofá onde estava deitado ao comprido e cumprimentou-me com calorosa vivacidade, na qual havia muito, de inicio julguei, de cordialidade forçada, do esforço constrangido de um homem de sociedade entediado. Mas, olhando seu rosto, convenci-me de sua perfeita sinceridade. Sentamos e, por alguns momentos, como ele não falava nada, fiquei olhando-o com um sentimento misto de piedade e espanto. Com toda a certeza, nenhum homem jamais se transformara tão terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick Usher! Só com muita dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de mim era o mesmo companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham sido notáveis: tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia. Todos esses traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte combinavam-se num aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que cheguei a duvidar de que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o brilho agora sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me aterravam. O cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por causa da textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer idéia de simples humanidade.
Fiquei abalado ao perceber logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência, e logo descobri que isso se devia a um série de fracos e inúteis esforços para dominar tremor freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava preparado para encontrar algo assim, não só por sua carta, mas também pela lembrança de certos traços juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado físico e de seu temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo. A voz variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor parecia tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão, para a abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada, gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de excitação.
Foi assim que ele se referiu ao objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me ver e do alívio que esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por algum tempo do que achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal de família e de nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar remédio; mera perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia passar logo. A doença se manifestava numa série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar talvez de que tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele sofria, e muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido alimento; não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de todas as flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos e só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.
Compreendi que ele estava escravizado por uma espécie anormal de terror.
– Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer nesta loucura lamentável. Assim, assim e de nenhuma outra forma é que vou me perder. Abomino os fatos do futuro, não em si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço diante da idéia de qualquer incidente, até mesmo o mais trivial, que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, na verdade, aversão pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror. Neste deplorável estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará um momento em que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na luta com o fantasma sinistro do MEDO.
Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas, outro traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas impressões supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos anos, não se aventurava a sair… a uma influência, cuja suposta força foi narrada em termos vagos demais para reproduzir aqui… influência que alguns detalhes da matéria e da forma da mansão familiar tinham, às custas de longo sofrimento, conseguindo exercer sobre seu espírito… efeito físico que as paredes e torres cinzentas e o sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado por exercer sobre o moral de sua existência.
Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte do desalento que sofria talvez tivesse origem mais natural e bem mais palpável: na séria e prolongada doença (na verdade, na morte evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua única companheira por longos anos, sua única e última parenta nesta terra.
– A morte dela ? disse ele, com amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele, fraco e sem esperanças) o último representante da antiga raça dos Usher.
Enquanto falava, Lady Madeline (pois era assim que se chamava) passou pela parte mais distante do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com profunda surpresa e uma ponta de medo ? e, no entanto, não encontrava explicação para esses sentimentos. Uma sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia com os olhos seus passos. Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas mãos, e só pude perceber que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta dos dedos magros, pelos quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.
A doença de Lady Madeline vinha desafiando, por muito tempo, a habilidade dos médicos. Apatia permanente, progressivo enfraquecimento físico e crises freqüentes, mas passageiras, caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico incomum. Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça, pelo menos com vida.
No decorrer dos dias seguintes, seu nome não foi mencionado por Usher ou por mim. Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me revelando os recessos mais íntimos de seu espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.
Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que passei a sós como o chefe da Casa de Usher. Mas nunca conseguiria dar uma idéia do caráter exato dos estudos ou das ocupações em que ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealidade excitada e altamente desequilibrada lançava um brilho sulfuroso sobre todas as coisas. Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha alteração e amplificação da romântica melodia da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas em que extravasava sua elaborada fantasia e que se metamorfoseavam, pincelada por pincelada, até atingir uma indefinição que me causava estremecimentos ainda mais emocionantes, pois eu não sabia por que estremecia ? quanto a essas pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens diante dos olhos) em vão me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena parte, passível de ser traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema simplicidade e crueza do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, na situação em que então em encontrava, dessas puras abstrações que o hipocondríaco conseguia projetar nas suas telas surgia um terror intenso e intolerável, assombro que nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida brilhantes) de Fuseli, mas ainda assim concretas demais.
Uma das criações fantasmagóricas de meu amigo em que esse espírito abstrato não era tão rígido pode ser descrita, ainda que pobremente, em palavras. Era um quadro pequeno, representando o interior de uma câmara ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem qualquer interrupção ou adornos. Certos detalhes do desenho conseguiam dar muito bem a idéia de que essa escavação ficava a uma extrema profundidade, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer abertura em toda a sua vasta extensão nem se percebiam tochas ou qualquer outra fonte de luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos raios jorrava, tudo banhando num esplendor cadavérico e antinatural.
Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo, que tornava intolerável qualquer música para esse sofredor, com exceção de certos efeitos de instrumentos de cordas. Foram, talvez, os estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto nas notas quanto nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes acompanhava a música com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e imperturbável concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos momentos de maior excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma dessas rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque, na corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente altiva sobre seu trono. Os versos, intitulados “O Palácio Assombrado”, eram quase exatamente assim:
I
No mais verde de nosso vales,
Por bons anjos habitado,
Outrora um belo e rico palácio,
Radiante palácio, se erguia.
Nos domínios do rei Pensamento,
Lá estava ele!
Nunca serafim algum abriu as asas
Sobre tão bela obra.
II
Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,
Em seus telhados flutuavam, ondulando
(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos
De antigamente)
E toda suave brisa que brincava,
Naqueles doces dias,
Pelos muros pálidos e engalanados,
Um sublime perfume desprendia.
III
Quem passava por esse vale feliz
Por duas janelas luminosas via
Espíritos deslizando, musicais,
Ao som de alaúde bem afinado,
Em volta de um tronco, onde sentava-se
(Porfirogênito (1)!),
Na grandeza de sua glória muito justa,
O senhor desse reinado.
IV
Pela bela porta do palácio
Brilhante com pérolas e rubis,
Ia passando, passando, passando,
E sempre mais cintilando,
Uma tropa de Ecos cujo doce dever
Era apenas cantar
Com vozes de insuperável beleza,
A viva sabedoria do rei.
V
Mas vultos maus, trajados de luto,
Atacaram o alto reino do monarca;
(Ah, choremos, pois nunca mais
O dia vai nascer para ele, o desolado!)
E, em volta do palácio, a glória
Que brilhava e florescia
Não passa agora de mal lembrada história
Dos velhos tempos sepultados.
VI
E quem passa agora pelo vale,
Pelas janelas rubras vê
Enormes formas que fantásticas se movem,
Ao som de melodia discordante;
Enquanto isso, como rio terrível,
Pela pálida porta se precipita
Para sempre uma hedionda multidão
Que gargalha, mas não mais sorri.
Lembro-me bem de que as sugestões despertadas pela balada nos levaram a uma linha de pensamento em que se tornou manifesta uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens (2) já pensaram desse modo), mas devido à insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em termo gerais, afirmava que todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação desordenada de Usher, essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e chegava, sob certos aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro palavras para expressar toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de sua convicção. Tal crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com as pedras cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa sensibilidade eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e na ordem com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que as cobriam e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo, na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas paradas do fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia ele (e me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas perturbadora e terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua família e que fizera dele, como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas opiniões dispensam comentário e não farei nenhum.
Nossos livros ? os livros que durante anos constituíram grande parte da existência mental do doente ? estavam , como se pode supor, em harmonia absoluta com esse caráter fantasmagórico. Lemos juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a epístola La Chartreuse, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de Swendenborg; Viagem subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de Robert Flud, de Jean D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis, de Tieck; e Cidade do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano Eymerico de Gerona; e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos sátiros africanos e mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante horas. Seu maior prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em gótico in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae.
Eu não podia deixar de pensar no estranho ritual descrito nesse livro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.
A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório. Depois de colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar de descanso. A câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo que nossas tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram examinar) era pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande profundidade, exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de dormir. Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as piores finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão e todo o interior da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido igualmente protegida. Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som incrivelmente agudo e áspero.
Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar, abrimos parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto da morta. A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e Usher, adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e a falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível sempre existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo sobre a morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que assim levara ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as doenças de natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio e no rosto e uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte. Recolocamos e parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro, voltamos abatidos para os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores da mansão.
Então, passados alguns dias de amarga tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos sintomas da perturbação mental de meu amigo. Seu modo de ser habitual desapareceu. Suas ocupações diárias eram negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava a esmo de sala em sala, com passos apressados e irregulares. A palidez de seu rosto assumiu, se isso é possível, um tom ainda mais cadavérico, mas a luminosidade de seus olhos dissipou-se completamente. Não se ouvia mais o tom áspero de sua voz, como às vezes sucedia antes, e um trêmulo balbucio, como se estivesse tomado de horror extremo, passou a caracterizar o seu modo de falar. Houve momentos, na verdade, em que pensei que sua mente sempre agitada estava em luta com algum segredo opressivo, empenhando-se em reunir coragem para contá-lo. Outras vezes era eu levado a atribuir tudo aquilo à inexplicável confusão da loucura, pois o via fitar o vazio durante horas, numa atitude da mais profunda atenção, como se estivesse ouvindo algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me causasse terror e me contaminasse. Senti-me aos poucos, inexoravelmente, invadido pela estranha influência de suas fantásticas mas impressionantes superstições.
Foi especialmente ao me deitar, já tarde da noite, sete ou oito dias depois de colocarmos o corpo de Lady Madeline na câmara, que percebi toda a força de tais sentimentos. O sono não se aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se lentamente. Lutei para controlar o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por acreditar que muito, senão tudo o que estava sentindo, se devia à perturbadora influência da soturna mobília do aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas que, movidas pelo sopro de uma tempestade que se formava, oscilavam de modo irregular nas paredes e roçavam inquietas pelos adornos do leito. Mas meus esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável aos poucos tomou conta de meu corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio coração o íncubo de uma comoção inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação com um arquejo e um sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o olhar a escuridão do aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez por um instinto que me aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas pausas da tempestade, a longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado por forte sentimento de horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de suportar, vesti-me rapidamente (pois senti que seria impossível dormir naquela noite) e tentei livrar-me, caminhando de um lado para outro pelo aposento, do estado penoso em que me achava.
Logo depois de iniciar as idas e vindas, um leve ruído de passos numa escada próxima me chamou a atenção. Logo reconheci que era Usher. No instante seguinte, ele bateu de leve em minha porta e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava, como sempre cadavérico, mas além disso havia uma espécie de riso louco em seus olhos, e, e, seu modo de proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto me aterrou, mas qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante tanto tempo e acolhi sua presença com grande alívio.
– E você não o viu? ? perguntou ele de repente, depois de olhar em volta por alguns momentos, sem silêncio. ? Não o viu? Mas espere! Você vai ver.
Assim dizendo ? e enquanto protegia cuidadosamente o lampião ? correu para uma das janelas e a escancarou para a tempestade.
A impetuosa fúria das rajadas de vento quase nos levantou do chão. Era na verdade uma noite tempestuosa, mas ainda assim bela e espantosamente singular no seu terror e perfeição. Aparentemente, um redemoinho juntara todas as suas forças ao nosso redor pois ocorriam freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a extrema densidade das nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da mansão) não nos impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de todos os pontos, chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe. Digo que nem mesmo a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto, embora não pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito de uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente luminosa e perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.
– Você não deve… não pode ficar olhando para isso! ? eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. ? Essas manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível.
O volume antigo que peguei era o Mad Trist (Assembléia do loucos) de Sir Launcelot Canning. Disse que era um dos favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a sério, pois, na verdade, sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que pudesse interessar à idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o único livro à mão ? e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações mentais está cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de imaginação que eu ia ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou parecia ouvir a leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.
E Ethereld, que tinha por natureza coração audaz e agora se sentia muito forte, graças ao vigor do vinho que havia bebido, não gastou mais tempo em discutir com o eremita, que em verdade tinha caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva nos ombros e temendo que caísse a tempestade, levantou a maça e, com vários golpes, logo abriu espaço nas tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro; brandindo-a com firmeza, quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira que o eco desse ruído seco e oco alarmou toda a floresta.
Ao terminar esta frase, assustei-me e parei por um momento, pois em parecia (embora logo concluísse que estava sendo iludido por minha excitada imaginação), me parecia que, de algum ponto remoto da mansão, chegava indistintamente a meus ouvidos algo que, por sua exata semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo e abafado) do ranger e estalar que Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era, sem dúvida, apenas a coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio do bater dos caixilhos das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som nada tinha, por certo, que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a história:
Mas o bom paladino Ethelred, entrando agora pela porta, ficou dolorosamente enraivecido e surpreendido por não encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas sim, em seu lugar, uma dragão coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com língua de fogo, que guardava um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a muralha pendia um escudo de bronze reluzente onde estava escrita a legenda:
Quem aqui penetrar, conquistador será;
Quem o dragão matar, o escudo ganhará.
E Ethelred levantou a maça e golpeou a cabeça do dragão, que caiu a seus pés, exalando o pestilento suspiro com um guincho tão horrível, áspero e penetrante que Ethelred teve de tapar os ouvidos com as mãos para suportar aquele terrível som, como jamais tinha ouvido antes.
Aqui, outra vez parei abruptamente, agora com a sensação de tremenda surpresa, pois não podia haver qualquer dúvida de que, desta vez, ouvi realmente (embora fosse impossível dizer de onde provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente distante, mas áspero, prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia imaginava como o guincho do dragão descrito pelo romancista.
Oprimido, como eu naturalmente estava, diante dessa Segunda e tão extraordinária coincidência, por mil sensações conflitantes, nas quais predominavam a perplexidade e o extremo terror, consegui ainda manter suficiente presença de espírito para não aguçar, com qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em questão, embora, sem dúvida, uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos minutos em seu rosto. Sentado diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até ficar de frente para a porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente seu rosto, apesar de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse murmurando baixinho. Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido, porque o olho que via de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu corpo também desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um balanço suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso, voltei para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:
E agora o paladino, tendo escapado à terrível fúria do dragão e lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encantamento que sobre ele pesava, afastou a carcaça do caminho e valorosamente avançou pelo chão de prata do castelo na direção da parede em que pendia o escudo, o qual, na verdade, não esperou que ele chegasse até perto, caindo-lhe aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e retumbante estrondo.
Nem bem essas palavras me passaram pelos lábios, ouvi distintamente como se um pesado escudo de bronze de fato tivesse caído, naquele momento, sobre um chão de prata ? uma reverberação nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de aparentemente abafada. Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o movimento regular de balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante de si e todo o seu rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o ombro com a mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso doentio brincou em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença. Inclinando-me sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas palavras.
– Não ouve, agora?… Sim, estou ouvindo e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos, muitos minutos, muitas horas, muitos dias, venho ouvindo… e no entanto não tive a coragem… Oh, pobre de mim, miserável infeliz!… não tive coragem… não tive coragem de falar! Nós a enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram aguçados? Agora lhe digo que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-os… há muitos, muitos dias… mas não tive coragem… não tive coragem de falar! E agora… esta noite… Ethelred… ha! há!… o rompimento da porta do eremita e o grito de morte do dragão e clangor do escudo!… Seria melhor dizer o destroçar do caixão e o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas de cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar agora mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ? Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!
Como se a energia sobre-humana de suas palavras produzisse a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a qual apontava foi abrindo lentamente, nesse instante, suas mandíbulas negras e pesadas. Havia sido obra do vento furioso ? mas além da porta estava de fato a figura alta e amortalhada de Lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu corpo emagrecido. Por um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral. Depois, com um gemido baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em sua violenta e agora final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima dos terrores que tinha previsto.
Fugi aterrorizado daquele quarto e daquela mansão. A tempestade ainda soprava com toda a fúria lá fora, quando atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o caminho uma luz fantástica, e me virei para ver de onde podia provir luminosidade tão estranha, pois atrás de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação vinha da lua cheia e cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora vivamente através daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que descia em ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda foi se alargando rapidamente… soprou uma feroz rajada de vento… O círculo inteiro do satélite tornou-se visível aos meus olhos… Meu cérebro vacilou quando vi aquelas sólidas paredes desmoronarem… ouviu-se um longo e desordenado estrondo, como o retumbar de mil cataratas… e o fosso fétido e profundo, a meus pés, fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher.
Edgar Allan Poe
Extraido do site Nox in Vitro
—
(1) Porfirogênito: Significa, em grego, “nascido na púrpura”. Dizia-se dos filhos dos antigos imperadores do Oriente nascidos durante o reinado do pai.
(2) Watson, Dr. Percival, Spallanzani e especialmente o Bispo de Llandaff. Ver Chemical essays, v.V. [Richard Watson (1737 ? 1816), químico inglês e bispo de Llandaff. James Gates Percival (1795 ? 1856), erudito norte-americano. Lazzaro Spallanzani (1729 ? 1799), naturalista Italiano.]
(3) Jean Baptiste Louis Gresset (1709 ? 1777), poeta e dramaturgo francês; Niccolò Maquiavel (1469 ? 1527), político e escritor italiano; Emanuel Swedenborg (1688 ? 1772), cientista e filósofo sueco; Ludvig Holberg (1684 ? 1754), escritor dinamarquês; Robert Flud (1574 ? 1637), médico inglês; Jean D`Indaginé é a grafia francesa para Joannes Indagine, pseudônimo de Johann von Hagen (séc XVI), escritor alemão; Marin Cureau De la Chambre (1596 ? 1669) médico francês; Ludwig Tieck (1773 ? 1853), escritor alemão; Tommanso Campanella (1568 ? 1639), filósofo italiano; Nicolás Eymerico (1320 ? 1399), teólogo espanhol; Pomponius Mela (séc. I d.C.), geógrafo Latino.
Assinar:
Postagens (Atom)