sexta-feira, 10 de março de 2017

Sombra

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Por que de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro. O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o ressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.
Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo – que era histérico – , e cantávamos as canções de Anacreonte – que são doidas -, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da
Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro

quinta-feira, 9 de março de 2017

Silêncio

Escuta – disse o demônio, pousando a mão sobre a minha cabeça. – O país de que te falo é um país lúgubre, na Líbia, às margens do rio Zaire. E ali não há repouso nem silêncio. As águas do rio, amarelas e insalubres, não correm para o mar, mas palpitam sempre sob o olhar ardente do Sol, com um movimento convulsivo. De cada lado do rio, sobre as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto sombrio de gigantescos nenúfares, que suspiram na solidão, erguendo para o céu os longos pescoços espectrais e meneando tristemente as cabeças sempiternas. E do meio deles sai um sussurro confuso, semelhante ao murmúrio de uma torrente subterrânea. E os nenúfares, voltados uns para os outros, suspiram na solidão.
E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, – como as vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo não há vento no céu! – e as grandes árvores primitivas oscilam continuamente, com um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas – venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso nem silêncio.
Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade da sua desolação.
De repente apareceu a lua através do nevoeiro fúnebre vinha toda carmesim! e o meu olhar caiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia a borda do Zaire, refletindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio sinistro de uma altura descomunal!
Sobre o seu cume estavam gravadas algumas letras. Caminhei através dos pântanos de nenúfares, até a margem para ler as letras gravadas na pedra; mas não pude decifrá-las. Ia voltar quando a lua brilhou mais viva e mais vermelha; olhando outra vez para o rochedo distingui só caracteres. E esses caracteres diziam: desolação.
Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura majestosa. Pendia-lhe dos ombros a antiga toga romana, cobrindo-se até aos pés. Os contornos da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade porque brilhavam através da escuridão da noite a do nevoeiro. Tinha a fronte alta e pensativa, os olhos profundos e melancólicos. Nas rugas do semblante, liam-se as legendas da desgraça e da fadiga o aborrecimento da humanidade e o amor da solidão. Escondi-me no meio dos nenúfares para ver o que aquele homem fazia ali.
E o homem assentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e espraiou a vista pela soledade, contemplou os arbustos buliçosos e as grandes árvores primitivas; depois, ergueu os olhos para a céu a para a lua carmesim. Eu observava as ações do homem escondido no meio dos nenúfares e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Então o homem desviou os olhos do céu para o rio lúgubre para as águas amarelas do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenúfares; escutou-lhes os suspiros melancólicos e as oscilações murmurantes E eu o espreitava sempre, do meu esconderijo e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Embrenhei-me na profundezas longínquas do pântano, caminhei sobre e as flores dos nenúfares e chamei os hipopótamos que habitavam a espessura do bosque. E os hipopótamos ouviram o meu chamado e vieram os Behemothes até o pé do rochedo e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenúfares, espreitava os movimentos do homem e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.
Então invoquei os elementos e uma tempestade horrorosa rosa sobreveio. E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade e a chuva caía em torrente sobre a cabeça do homem e as ondas do rio transbordavam e o rio espumava enfurecido e os nenúfares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o trovão ribombava e os raios flamejavam, e o rochedo estremecia.
Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenúfares, o vento e as floresta, o céu e o trovão. E na minha maldição os elementos emudeceram e a lua parou na sua carreira, e o trovão expirou e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram imóveis e as águas tornaram n repousar no seu imenso leito, e as árvores cessaram de se agitar, e os nenúfares não suspiraram mais e na floresta não se tornou a ouvir o mínimo murmúrio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei para os caracteres escritos no rochedo e os caracteres diziam agora: Silêncio.
Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pálido de terror. De repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e pôs o ouvido à escuta. Mas não se ouviu nem uma voz no deserto ilimitado. E os caracteres gravados no rochedo diziam sempre: Silêncio. E o homem estremeceu e fugiu e para tão longe fugiu que jamais o tornei a ver.
Ora, os livros dos magos, os melancólicos livros dos magos encerram belos contos, esplêndidas histórias do céu, da terra e do mar poderosos; dos gênios que têm reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céu sublime. Há muita ciência na palavra das Sibilas. E das florestas sombrias de Dodona saíam outrora oráculos profundos.
Mas jamais se ouviu uma história tão espantosa como esta! Foi o demônio que ma contou, assentado ao um lado, na solidão do túmulo. Quando acabou de falar, desatou a rir e como não pudesse rir com ele, amaldiçoou-me. Então o lince, que vive eternamente no túmulo, saiu do seu esconderijo e veio deitar-se aos pés do demônio, olhando-o fixamente nas pupilas.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro

quarta-feira, 8 de março de 2017

O Rei Peste

Os deuses suportam nos reis, e permitem,
as coisas que odeiam em meio à ralé.

BUCKHURST: A Tragédia de Ferrex e Porrex.
Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha como insígnia a tabuleta dum “Alegre Marinheiro”. embora mal construída, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.
Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.
O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição. O marujo mais moço era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia além de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos, de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de lamber seus beiços, de vez em quando. E evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de espanto, meio de zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo, parecia o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis. Várias e aventurosas haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida. No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados, com os cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto deles, estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de decifrar caracteres escritos – dom considerado então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a arte de escrever – pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a cargo dos dois discípulos do mar; mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na linguagem alegórica do próprio Legs, “correr às bombas, ferrar todas as velas e correr com o vento em popa”.
Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por duas vezes, entrado de chaminé adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção da Escada de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do “Alegre Marinheiro”.
Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o espantoso grito de: “Peste!” A cidade estava em grande parte despovoada, e naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à vontade.
Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se, sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os riscos e incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o período de exílio, a tão insuficiente segurança.
Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos à ação de mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram, para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se contavam a toda hora que toda a massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a disparada em que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de ébrios, com berros e urros, em breve se perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .
Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio e nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e tornozelos.
Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite, nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilencial e brumosa, podiam-se perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento mesmo da perpetração de seu roubo.
Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão eretos quanto lhes permitia seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos índios; e para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulmões estentóricos.
Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível, as veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes montões de caliça, não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda com carne.
De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e sinistro edifício, um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e lá de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos, semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta, escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio dum montão de coisas.
A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou tentar descrevê-los um por um.
Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado um personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e Legs sentiu-se confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico para merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias, que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse. Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia não menos extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de descrever, não tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal. Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente destacada para merecer caracterização especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela fazia, no entanto, todos os esforços para conservar a boca fechada, com ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia para um lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto equívoca.
Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma perna enfaixada posta sobre a mesa, parecia achar-se com direito a alguma consideração. Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal, mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de aristocratas falecidos.
Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num acesso daquilo que Tarpaulin chamava “os terrores”. Seus queixos, recentemente barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução necessária, na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se na atmosfera do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte dele, sentava-se o sexto e último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços tinham sido cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância; apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete, formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num absoluto espanto de sua própria enormidade.
Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo. Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra, saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça desconjuntada e chocalhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O crânio daquela hedionda coisa continha certa quantidade de carvão em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se projetasse na rua.
À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos, nossos dois marujos não se conduziram com aquele grau de decoro que era de esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.
Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos, fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas relações. Diante de tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias conseqüências poderiam ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o bastão na mesa, distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:
– É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.
– Pare com isso! – interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo- lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e que estão fazendo aqui, com essas farpelas de diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado camarada Will Wimble, o cangalheiro!
À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade, recomeçou:
– De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de “Rei Peste I.” Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta noite, aos nossos reais ouvidos… esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de natureza sagrada e superior.
A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos títulos de: “Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero”, “Sua Graça o Duque Pest- Ilencial”, “Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso” e “Sua Serena Alteza a Arquiduquesa Ana-Peste”.
Quanto à vossa pergunta – continuou ele -, a respeito do que nos trás aqui reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne exclusivamente, ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância para ninguém mais que não nós mesmos. Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de hóspedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e licores desta formosa metrópole. Assim procedemos não só para melhorar nossa própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e cujo nome é “Morte”.
– Cujo nome é Davi Jones! – exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.
– Lacaio profanador! – exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. – Miserável e execrando profanador. Dissemos que, em consideração àqueles direitos que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação para violar, condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações. Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos, acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de Black Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se acordo com vossos respectivos gostos pessoais.
– Será coisa de absoluta impossibilidade – replicou Legs, a quem a imponência e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.
– Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arrumar no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo para servir de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados esta noite em vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e devidamente paga na taberna do “Alegre Marinheiro”. De modo que há de Vossa Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada, pois não posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito menos um trago dessa repugnante água-de-porão que responde ao nome de Black Strap.
– Pare com isso! – interrompeu Tarpaulin, espantado não só pelo tamanho do discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. – Pare com isso, seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas…
– Este modo de proceder – interferiu o presidente – não está de modo algum em acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode ser alterada nem apelada. As condições que impusemos devem ser cumpridas à risca, e isto sem um instante de hesitação… sem o quê, decretamos que sejais amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de cerveja-de-outubro!
– Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! – gritaram todos os membros da família Peste ao mesmo tempo.
O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como um par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para o outro; o cavalheiro de ceroulas de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário ofegava como um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais, arregalando os olhos para cima.
– Oh, uh, uh! – ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. – Uh, uh, … Uh, uh, uh… Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de Black Strap era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente, que eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim Hurlygurly, o palhaço!… Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha compreensão.
Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.
– Traição! – gritou Sua Majestade o Rei Peste I.
– Traição! – disse o homenzinho gotoso.
– Traição! – esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.
– Traição! – murmurou o homem dos queixos amarrados.
– Traição! – grunhiu o sujeito do ataúde.
– Traição, traição! – berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado seus esforços de safar-se.
Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada. Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros lampejos de luz dentro da sala.
Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de licor tão impetuoso, violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de parede a parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na chaminé da lareira… e as damas caíram com ataques histéricos. Montes de artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques afogou-se imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão… e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário, arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a Arquiduquesa Ana-Peste.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Alguns Textos

terça-feira, 7 de março de 2017

A Queda da Casa de Usher

Durante todo aquele triste, escuro e silencioso dia outonal, com o céu encoberto por nuvens baixas e opressivas, estive percorrendo sozinho, a cavalo, uma região rural singularmente deserta, até que enfim avistei, com as primeiras sombras da noite , a melancólica Casa de Usher. Não sei por quê, mas, assim que entrevi a construção, um sentimento de intolerável tristeza apoderou-se de meu espírito. Digo intolerável porque essa impressão não era suavizada por qualquer sensação meio prazenteira, porque poética, com que a mente geralmente recebe até mesmo as mais sombrias imagens naturais de desolação e de terror. Observei a paisagem à minha frente: a casa simples e a simplicidade do aspecto da propriedade, as paredes frias, as janelas semelhando órbitas vazias, os poucos canteiros com ervas daninhas e alguns troncos esbranquiçados de árvores apodrecidas ? e senti na alma uma depressão profunda que não posso comparar a nenhuma sensação terrena senão ao que experimenta, ao despertar, o viciado em ópio: o amargo retorno à vida cotidiana, o terrível descair de um véu. Havia um frio, uma prostração, uma sensação de repugnância, uma irrecuperável aflição de pensamento que nenhum excitamento da imaginação conseguiria forçar a transformar-se em algo sublime. Que era, parei para pensar, que era que tanto em perturbava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e eu não conseguia controlar as sombrias imagens que me enchiam a cabeça enquanto refletia isso. Fui forçado a socorrer-me da conclusão nada satisfatória de que existem, sem dúvida, combinações de objetos naturais muito simples, que têm o poder de nos afetar assim, embora a análise desse poder se situe em considerações além de nossa perspicácia. Era possível, pensei, que um mero arranjo diferente nos pormenores da cena, dos detalhes do quadro, bastasse para modificar, ou talvez, parar suprimir sua capacidade de provocar impressões aflitivas. Com essa idéia na cabeça, guiei o cavalo até a margem íngreme de um fosso negro e sinistro cujas águas paradas refulgiam junto a casa e contemplei, com um arrepio ainda mais forte do que antes, a imagem invertida e modificada dos arbusto cinzentos, dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.
Apesar disso, era nessa desolada mansão que eu tencionava passar algumas semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia sido um de meus joviais amigos de infância, mas muitos anos tinham se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, no entanto, que me chegara recentemente numa parte distante do país ? uma carta dele ? exigia pela insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela agitação nervosa. O remetente falava de aguda doença física, de opressiva perturbação mental e do intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia, alguma alívio para sua doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas foram ditas e o manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me qualquer hesitação e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda considerava como um convite muito estranho.
Apesar de, quando crianças, termos sido companheiros íntimos, eu na verdade conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu sabia, no entanto, que sua família, muito antiga, distinguia-se havia muito tempo pela peculiar sensibilidade de temperamento, demonstrada ao longo de muitos séculos em notáveis obras de arte e que ultimamente se manifestava em repetidos atos de generosa e discreta caridade e também na apaixonada devoção pela complexidade da ciência musical, talvez ainda mais do que por suas belezas naturais e fáceis de reconhecer. Fiquei sabendo também de um fato incrível: o tronco da linhagem dos Usher, embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer ramo duradouro. Em outras palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta e assim continuava, com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia entre o aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a possível influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes ? era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao longo dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original da propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a família quanto para a mansão da família.
Eu disse que o único efeito da minha experiência um tanto infantil de olhar para o fosso havia sido aprofundar aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei consciência do rápido aumento de minha superstição (por que não usar esse termo?), isso serviu principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei disso há muito tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E pode ter sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no fosso para a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão estranha, de fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente acreditei que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial, própria do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar do céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e lívido.
Afastando do espírito o que devia ser um sonho, examinei mais atentamente o aspecto real do edifício. Sua característica principal parecia ser a extrema antigüidade. Fora grande a descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas nada disso indicava grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha desmoronado, mas parecia haver um profundo contraste entre o encaixe ainda perfeito das partes e as péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito a enganosa integridade de antigas peças de madeira que apodreceram por longos anos em algum porão esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior. Afora esse indício de grande decadência, porém, a construção não mostrava nenhum sinal de falta de segurança. Talvez o olho de um observador mais atento conseguisse descobrir uma fenda quase imperceptível que riscava a frente do edifício desde
o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.
Observando tudo isso, atravessei a cavalo o curto carreiro que levava até a casa. Um cavalariço levou minha montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um criado de andar furtivo conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e tortuosas, até o gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho contribuíam, não sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os objetos à minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam quando eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado desde a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família. Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa. Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me levou até a presença de seu patrão.
Achei-me numa sala muito ampla e alta. As janelas, compridas, estreitas e pontudas, tinham peitoris tão afastados do assoalho de carvalho negro que era impossível alcança-los. Fracos raios de luz avermelhada penetravam pelas vidraças guarnecidas com rótulas, só conseguindo tornar visíveis os objetos próximos mais volumosos. O Olhar, porém, lutava em vão para perceber os cantos mais distantes da sala ou os recessos do forro em abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias cortinas pendiam das paredes. O mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e gasto. Os muitos livros e instrumentos musicais que jaziam dispersos não conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Uma ar de severo, profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as coisas e impregnava a tudo.
Assim que entrei, Usher levantou-se do sofá onde estava deitado ao comprido e cumprimentou-me com calorosa vivacidade, na qual havia muito, de inicio julguei, de cordialidade forçada, do esforço constrangido de um homem de sociedade entediado. Mas, olhando seu rosto, convenci-me de sua perfeita sinceridade. Sentamos e, por alguns momentos, como ele não falava nada, fiquei olhando-o com um sentimento misto de piedade e espanto. Com toda a certeza, nenhum homem jamais se transformara tão terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick Usher! Só com muita dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de mim era o mesmo companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham sido notáveis: tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia. Todos esses traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte combinavam-se num aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que cheguei a duvidar de que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o brilho agora sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me aterravam. O cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por causa da textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer idéia de simples humanidade.
Fiquei abalado ao perceber logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência, e logo descobri que isso se devia a um série de fracos e inúteis esforços para dominar tremor freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava preparado para encontrar algo assim, não só por sua carta, mas também pela lembrança de certos traços juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado físico e de seu temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo. A voz variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor parecia tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão, para a abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada, gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de excitação.
Foi assim que ele se referiu ao objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me ver e do alívio que esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por algum tempo do que achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal de família e de nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar remédio; mera perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia passar logo. A doença se manifestava numa série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar talvez de que tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele sofria, e muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido alimento; não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de todas as flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos e só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.
Compreendi que ele estava escravizado por uma espécie anormal de terror.
– Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer nesta loucura lamentável. Assim, assim e de nenhuma outra forma é que vou me perder. Abomino os fatos do futuro, não em si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço diante da idéia de qualquer incidente, até mesmo o mais trivial, que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, na verdade, aversão pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror. Neste deplorável estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará um momento em que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na luta com o fantasma sinistro do MEDO.
Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas, outro traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas impressões supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos anos, não se aventurava a sair… a uma influência, cuja suposta força foi narrada em termos vagos demais para reproduzir aqui… influência que alguns detalhes da matéria e da forma da mansão familiar tinham, às custas de longo sofrimento, conseguindo exercer sobre seu espírito… efeito físico que as paredes e torres cinzentas e o sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado por exercer sobre o moral de sua existência.
Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte do desalento que sofria talvez tivesse origem mais natural e bem mais palpável: na séria e prolongada doença (na verdade, na morte evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua única companheira por longos anos, sua única e última parenta nesta terra.
– A morte dela ? disse ele, com amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele, fraco e sem esperanças) o último representante da antiga raça dos Usher.
Enquanto falava, Lady Madeline (pois era assim que se chamava) passou pela parte mais distante do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com profunda surpresa e uma ponta de medo ? e, no entanto, não encontrava explicação para esses sentimentos. Uma sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia com os olhos seus passos. Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas mãos, e só pude perceber que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta dos dedos magros, pelos quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.
A doença de Lady Madeline vinha desafiando, por muito tempo, a habilidade dos médicos. Apatia permanente, progressivo enfraquecimento físico e crises freqüentes, mas passageiras, caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico incomum. Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça, pelo menos com vida.
No decorrer dos dias seguintes, seu nome não foi mencionado por Usher ou por mim. Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me revelando os recessos mais íntimos de seu espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.
Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que passei a sós como o chefe da Casa de Usher. Mas nunca conseguiria dar uma idéia do caráter exato dos estudos ou das ocupações em que ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealidade excitada e altamente desequilibrada lançava um brilho sulfuroso sobre todas as coisas. Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha alteração e amplificação da romântica melodia da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas em que extravasava sua elaborada fantasia e que se metamorfoseavam, pincelada por pincelada, até atingir uma indefinição que me causava estremecimentos ainda mais emocionantes, pois eu não sabia por que estremecia ? quanto a essas pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens diante dos olhos) em vão me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena parte, passível de ser traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema simplicidade e crueza do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, na situação em que então em encontrava, dessas puras abstrações que o hipocondríaco conseguia projetar nas suas telas surgia um terror intenso e intolerável, assombro que nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida brilhantes) de Fuseli, mas ainda assim concretas demais.
Uma das criações fantasmagóricas de meu amigo em que esse espírito abstrato não era tão rígido pode ser descrita, ainda que pobremente, em palavras. Era um quadro pequeno, representando o interior de uma câmara ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem qualquer interrupção ou adornos. Certos detalhes do desenho conseguiam dar muito bem a idéia de que essa escavação ficava a uma extrema profundidade, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer abertura em toda a sua vasta extensão nem se percebiam tochas ou qualquer outra fonte de luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos raios jorrava, tudo banhando num esplendor cadavérico e antinatural.
Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo, que tornava intolerável qualquer música para esse sofredor, com exceção de certos efeitos de instrumentos de cordas. Foram, talvez, os estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto nas notas quanto nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes acompanhava a música com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e imperturbável concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos momentos de maior excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma dessas rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque, na corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente altiva sobre seu trono. Os versos, intitulados “O Palácio Assombrado”, eram quase exatamente assim:
I
No mais verde de nosso vales,
Por bons anjos habitado,
Outrora um belo e rico palácio,
Radiante palácio, se erguia.
Nos domínios do rei Pensamento,
Lá estava ele!
Nunca serafim algum abriu as asas
Sobre tão bela obra.
II
Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,
Em seus telhados flutuavam, ondulando
(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos
De antigamente)
E toda suave brisa que brincava,
Naqueles doces dias,
Pelos muros pálidos e engalanados,
Um sublime perfume desprendia.
III
Quem passava por esse vale feliz
Por duas janelas luminosas via
Espíritos deslizando, musicais,
Ao som de alaúde bem afinado,
Em volta de um tronco, onde sentava-se
(Porfirogênito (1)!),
Na grandeza de sua glória muito justa,
O senhor desse reinado.
IV
Pela bela porta do palácio
Brilhante com pérolas e rubis,
Ia passando, passando, passando,
E sempre mais cintilando,
Uma tropa de Ecos cujo doce dever
Era apenas cantar
Com vozes de insuperável beleza,
A viva sabedoria do rei.
V
Mas vultos maus, trajados de luto,
Atacaram o alto reino do monarca;
(Ah, choremos, pois nunca mais
O dia vai nascer para ele, o desolado!)
E, em volta do palácio, a glória
Que brilhava e florescia
Não passa agora de mal lembrada história
Dos velhos tempos sepultados.
VI
E quem passa agora pelo vale,
Pelas janelas rubras vê
Enormes formas que fantásticas se movem,
Ao som de melodia discordante;
Enquanto isso, como rio terrível,
Pela pálida porta se precipita
Para sempre uma hedionda multidão
Que gargalha, mas não mais sorri.

Lembro-me bem de que as sugestões despertadas pela balada nos levaram a uma linha de pensamento em que se tornou manifesta uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens (2) já pensaram desse modo), mas devido à insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em termo gerais, afirmava que todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação desordenada de Usher, essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e chegava, sob certos aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro palavras para expressar toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de sua convicção. Tal crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com as pedras cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa sensibilidade eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e na ordem com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que as cobriam e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo, na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas paradas do fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia ele (e me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas perturbadora e terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua família e que fizera dele, como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas opiniões dispensam comentário e não farei nenhum.
Nossos livros ? os livros que durante anos constituíram grande parte da existência mental do doente ? estavam , como se pode supor, em harmonia absoluta com esse caráter fantasmagórico. Lemos juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a epístola La Chartreuse, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de Swendenborg; Viagem subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de Robert Flud, de Jean D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis, de Tieck; e Cidade do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano Eymerico de Gerona; e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos sátiros africanos e mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante horas. Seu maior prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em gótico in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae.
Eu não podia deixar de pensar no estranho ritual descrito nesse livro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.
A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório. Depois de colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar de descanso. A câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo que nossas tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram examinar) era pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande profundidade, exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de dormir. Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as piores finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão e todo o interior da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido igualmente protegida. Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som incrivelmente agudo e áspero.
Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar, abrimos parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto da morta. A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e Usher, adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e a falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível sempre existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo sobre a morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que assim levara ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as doenças de natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio e no rosto e uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte. Recolocamos e parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro, voltamos abatidos para os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores da mansão.
Então, passados alguns dias de amarga tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos sintomas da perturbação mental de meu amigo. Seu modo de ser habitual desapareceu. Suas ocupações diárias eram negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava a esmo de sala em sala, com passos apressados e irregulares. A palidez de seu rosto assumiu, se isso é possível, um tom ainda mais cadavérico, mas a luminosidade de seus olhos dissipou-se completamente. Não se ouvia mais o tom áspero de sua voz, como às vezes sucedia antes, e um trêmulo balbucio, como se estivesse tomado de horror extremo, passou a caracterizar o seu modo de falar. Houve momentos, na verdade, em que pensei que sua mente sempre agitada estava em luta com algum segredo opressivo, empenhando-se em reunir coragem para contá-lo. Outras vezes era eu levado a atribuir tudo aquilo à inexplicável confusão da loucura, pois o via fitar o vazio durante horas, numa atitude da mais profunda atenção, como se estivesse ouvindo algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me causasse terror e me contaminasse. Senti-me aos poucos, inexoravelmente, invadido pela estranha influência de suas fantásticas mas impressionantes superstições.
Foi especialmente ao me deitar, já tarde da noite, sete ou oito dias depois de colocarmos o corpo de Lady Madeline na câmara, que percebi toda a força de tais sentimentos. O sono não se aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se lentamente. Lutei para controlar o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por acreditar que muito, senão tudo o que estava sentindo, se devia à perturbadora influência da soturna mobília do aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas que, movidas pelo sopro de uma tempestade que se formava, oscilavam de modo irregular nas paredes e roçavam inquietas pelos adornos do leito. Mas meus esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável aos poucos tomou conta de meu corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio coração o íncubo de uma comoção inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação com um arquejo e um sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o olhar a escuridão do aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez por um instinto que me aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas pausas da tempestade, a longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado por forte sentimento de horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de suportar, vesti-me rapidamente (pois senti que seria impossível dormir naquela noite) e tentei livrar-me, caminhando de um lado para outro pelo aposento, do estado penoso em que me achava.
Logo depois de iniciar as idas e vindas, um leve ruído de passos numa escada próxima me chamou a atenção. Logo reconheci que era Usher. No instante seguinte, ele bateu de leve em minha porta e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava, como sempre cadavérico, mas além disso havia uma espécie de riso louco em seus olhos, e, e, seu modo de proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto me aterrou, mas qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante tanto tempo e acolhi sua presença com grande alívio.
– E você não o viu? ? perguntou ele de repente, depois de olhar em volta por alguns momentos, sem silêncio. ? Não o viu? Mas espere! Você vai ver.
Assim dizendo ? e enquanto protegia cuidadosamente o lampião ? correu para uma das janelas e a escancarou para a tempestade.
A impetuosa fúria das rajadas de vento quase nos levantou do chão. Era na verdade uma noite tempestuosa, mas ainda assim bela e espantosamente singular no seu terror e perfeição. Aparentemente, um redemoinho juntara todas as suas forças ao nosso redor pois ocorriam freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a extrema densidade das nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da mansão) não nos impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de todos os pontos, chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe. Digo que nem mesmo a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto, embora não pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito de uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente luminosa e perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.
– Você não deve… não pode ficar olhando para isso! ? eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. ? Essas manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível.
O volume antigo que peguei era o Mad Trist (Assembléia do loucos) de Sir Launcelot Canning. Disse que era um dos favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a sério, pois, na verdade, sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que pudesse interessar à idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o único livro à mão ? e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações mentais está cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de imaginação que eu ia ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou parecia ouvir a leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.
E Ethereld, que tinha por natureza coração audaz e agora se sentia muito forte, graças ao vigor do vinho que havia bebido, não gastou mais tempo em discutir com o eremita, que em verdade tinha caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva nos ombros e temendo que caísse a tempestade, levantou a maça e, com vários golpes, logo abriu espaço nas tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro; brandindo-a com firmeza, quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira que o eco desse ruído seco e oco alarmou toda a floresta.
Ao terminar esta frase, assustei-me e parei por um momento, pois em parecia (embora logo concluísse que estava sendo iludido por minha excitada imaginação), me parecia que, de algum ponto remoto da mansão, chegava indistintamente a meus ouvidos algo que, por sua exata semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo e abafado) do ranger e estalar que Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era, sem dúvida, apenas a coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio do bater dos caixilhos das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som nada tinha, por certo, que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a história:
Mas o bom paladino Ethelred, entrando agora pela porta, ficou dolorosamente enraivecido e surpreendido por não encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas sim, em seu lugar, uma dragão coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com língua de fogo, que guardava um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a muralha pendia um escudo de bronze reluzente onde estava escrita a legenda:
Quem aqui penetrar, conquistador será;
Quem o dragão matar, o escudo ganhará.
E Ethelred levantou a maça e golpeou a cabeça do dragão, que caiu a seus pés, exalando o pestilento suspiro com um guincho tão horrível, áspero e penetrante que Ethelred teve de tapar os ouvidos com as mãos para suportar aquele terrível som, como jamais tinha ouvido antes.
Aqui, outra vez parei abruptamente, agora com a sensação de tremenda surpresa, pois não podia haver qualquer dúvida de que, desta vez, ouvi realmente (embora fosse impossível dizer de onde provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente distante, mas áspero, prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia imaginava como o guincho do dragão descrito pelo romancista.
Oprimido, como eu naturalmente estava, diante dessa Segunda e tão extraordinária coincidência, por mil sensações conflitantes, nas quais predominavam a perplexidade e o extremo terror, consegui ainda manter suficiente presença de espírito para não aguçar, com qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em questão, embora, sem dúvida, uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos minutos em seu rosto. Sentado diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até ficar de frente para a porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente seu rosto, apesar de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse murmurando baixinho. Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido, porque o olho que via de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu corpo também desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um balanço suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso, voltei para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:
E agora o paladino, tendo escapado à terrível fúria do dragão e lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encantamento que sobre ele pesava, afastou a carcaça do caminho e valorosamente avançou pelo chão de prata do castelo na direção da parede em que pendia o escudo, o qual, na verdade, não esperou que ele chegasse até perto, caindo-lhe aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e retumbante estrondo.
Nem bem essas palavras me passaram pelos lábios, ouvi distintamente como se um pesado escudo de bronze de fato tivesse caído, naquele momento, sobre um chão de prata ? uma reverberação nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de aparentemente abafada. Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o movimento regular de balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante de si e todo o seu rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o ombro com a mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso doentio brincou em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença. Inclinando-me sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas palavras.
– Não ouve, agora?… Sim, estou ouvindo e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos, muitos minutos, muitas horas, muitos dias, venho ouvindo… e no entanto não tive a coragem… Oh, pobre de mim, miserável infeliz!… não tive coragem… não tive coragem de falar! Nós a enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram aguçados? Agora lhe digo que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-os… há muitos, muitos dias… mas não tive coragem… não tive coragem de falar! E agora… esta noite… Ethelred… ha! há!… o rompimento da porta do eremita e o grito de morte do dragão e clangor do escudo!… Seria melhor dizer o destroçar do caixão e o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas de cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar agora mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ? Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!
Como se a energia sobre-humana de suas palavras produzisse a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a qual apontava foi abrindo lentamente, nesse instante, suas mandíbulas negras e pesadas. Havia sido obra do vento furioso ? mas além da porta estava de fato a figura alta e amortalhada de Lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu corpo emagrecido. Por um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral. Depois, com um gemido baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em sua violenta e agora final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima dos terrores que tinha previsto.
Fugi aterrorizado daquele quarto e daquela mansão. A tempestade ainda soprava com toda a fúria lá fora, quando atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o caminho uma luz fantástica, e me virei para ver de onde podia provir luminosidade tão estranha, pois atrás de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação vinha da lua cheia e cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora vivamente através daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que descia em ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda foi se alargando rapidamente… soprou uma feroz rajada de vento… O círculo inteiro do satélite tornou-se visível aos meus olhos… Meu cérebro vacilou quando vi aquelas sólidas paredes desmoronarem… ouviu-se um longo e desordenado estrondo, como o retumbar de mil cataratas… e o fosso fétido e profundo, a meus pés, fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher.
Edgar Allan Poe
Extraido do site Nox in Vitro

(1) Porfirogênito: Significa, em grego, “nascido na púrpura”. Dizia-se dos filhos dos antigos imperadores do Oriente nascidos durante o reinado do pai.
(2) Watson, Dr. Percival, Spallanzani e especialmente o Bispo de Llandaff. Ver Chemical essays, v.V. [Richard Watson (1737 ? 1816), químico inglês e bispo de Llandaff. James Gates Percival (1795 ? 1856), erudito norte-americano. Lazzaro Spallanzani (1729 ? 1799), naturalista Italiano.]
(3) Jean Baptiste Louis Gresset (1709 ? 1777), poeta e dramaturgo francês; Niccolò Maquiavel (1469 ? 1527), político e escritor italiano; Emanuel Swedenborg (1688 ? 1772), cientista e filósofo sueco; Ludvig Holberg (1684 ? 1754), escritor dinamarquês; Robert Flud (1574 ? 1637), médico inglês; Jean D`Indaginé é a grafia francesa para Joannes Indagine, pseudônimo de Johann von Hagen (séc XVI), escritor alemão; Marin Cureau De la Chambre (1596 ? 1669) médico francês; Ludwig Tieck (1773 ? 1853), escritor alemão; Tommanso Campanella (1568 ? 1639), filósofo italiano; Nicolás Eymerico (1320 ? 1399), teólogo espanhol; Pomponius Mela (séc. I d.C.), geógrafo Latino.

segunda-feira, 6 de março de 2017

O Poço e o Pendulo

Estava exausto, mortalmente exausto com aquela longa agonia e, quando por fim me desamarraram e pude sentar-me, senti que perdia os sentidos. A sentença – a terrível sentença de morte – foi a última frase que chegou, claramente, aos meus ouvidos. Depois, o som das vozes dos inquisidores pareceu apagar-se naquele zumbido indefinido de sonho. O ruído despertava em minha alma a idéia de rotação, talvez devido à sua associação, em minha mente, com o ruído característico de uma roda de moinho. Mas isso durou pouco, pois, logo depois, nada mais ouvi. Não obstante, durante alguns momentos, pude ver, mas com que terrível exagero! Via os lábios dos juízes vestidos de preto. Pareciam-me brancos, mais brancos do que a folha de papel em que traço estas palavras, e grotescamente finos – finos pela intensidade de sua expressão de firmeza, pela sua inflexível resolução, pelo severo desprezo ao sofrimento humano. Via que os decretos daquilo que para mim representava o destino saíam ainda daqueles lábios. Vi-os contorcerem-se numa frase mortal; vi-os pronunciarem as sílabas de meu nome – e estremeci, pois nenhum som lhes acompanhava os movimentos. Vi, também, durante alguns momentos de delírio e terror, a suave e quase imperceptível. ondulação das negras tapeçarias que cobriam as paredes da sala, e o meu olhar caiu então sobre as sete grandes velas que estavam em cima da mesa. A princípio, tiveram para mim o aspecto de uma claridade, e pareceram-me anjos brancos e esguios que deveriam salvar-me. Mas, de repente, uma náusea mortal invadiu-me a alma, e senti que cada fibra de meu corpo estremecia como se houvesse tocado os fios de uma bateria galvânica. As formas angélicas se converteram em inexpressivos espectros com cabeças de chama, e vi que não poderia esperar delas auxílio algum. Então, como magnífica nota musical, insinuou-se em minha imaginação a idéia do doce repouso que me aguardava no túmulo. Chegou suave, furtivamente – e penso que precisei de muito tempo para apreciá-la devidamente. Mas, no instante preciso em que meu espírito começava a sentir e alimentar essa idéia, as figuras dos juízes se dissiparam, como por arte de mágica, ante os meus olhos. As grandes velas reduziram-se a nada; suas chamas se apagaram por completo e sobreveio o negror das trevas; todas as sensações pareceram desaparecer como numa queda louca da alma até o Hades. E o universo transformou-se em noite, silêncio, imobilidade.
Eu desmaiara; mas, não obstante, não posso dizer que houvesse perdido de todo a consciência. Não procurarei definir, nem descrever sequer, o que dela me restava. Nem tudo, porém, estava perdido. Em meio do mais profundo sono… não! Em meio do delírio… não! Em meio do desfalecimento. . . não! Em meio da morte… não! Nem mesmo na morte tudo está perdido. Do contrário, não haveria imortalidade para o homem. Quando despertamos do mais profundo sono, desfazemos as teias de aranha de algum sonho. E, não obstante, um segundo depois não nos lembramos de haver sonhado, por mais delicada que tenha sido a teia. Na volta a vida, depois do desmaio, há duas fases: o sentimento da existência moral ou espiritual e o da existência física. Parece provável que, se ao chegar à segunda fase tivéssemos de evocar as impressões da primeira, tornaríamos a encontrar todas as lembranças eloqüentes do abismo do outro mundo. E qual é esse abismo? Como, ao menos, poderemos distinguir suas sombras das do túmulo?
Mas, se as impressões do que chamamos primeira fase não nos acodem de novo ao chamado da vontade, acaso não nos aparecem depois de longo intervalo, sem ser solicitadas, enquanto, maravilhados, perguntamos a nós mesmos de onde provêm? Quem nunca perdeu os sentidos não descobrirá jamais estranhos palácios e rostos singularmente familiares entre as chamas ardentes; não contemplará, flutuante no ar, as melancólicas visões que muitos talvez jamais contemplem; não meditará nunca sobre o perfume de alguma flor desconhecida, nem mergulhará no mistério de alguma melodia que jamais lhe chamou antes a atenção.
Em meio de meus freqüentes e profundos esforços para recordar, em meio de minha luta tenaz para apreender algum vestígio desse estado de vácuo aparente em que minha alma mergulhara, houve breves, brevíssimos instan-tes em que julguei triunfar, momentos fugidios em que cheguei a reunir lembranças que, em ocasiões posteriores, meu raciocínio, lúcido, me afirmou não poderem referir-se senão a esse estado em que a consciência parece aniquilada. Essas sombras de lembranças apresentavam, indistintamente, grandes figuras que me carregavam, transportando-me, silenciosamente, para baixo… para baixo… ainda mais para baixo… até que uma vertigem horrível me oprimia, ante a idéia de que não tinha mais fim tal descida. Também me lembro de que despertavam um vago horror no fundo de meu coração, devido precisamente à tranqüilidade sobrenatural desse mesmo coração. Depois, o sentimento de uma súbita imobilidade em tudo o que me cercava, como se aqueles que me carregavam (espantosa comitiva!) ultrapassassem, em sua descida, os limites do ilimitado, e fizessem uma pausa, vencidos pelo cansaço de seu esforço. Depois disso, lembro-me de uma sensação de monotonia e de umidade. Depois, tudo é loucura – a loucura da memória que se agita entre coisas proibidas.
Súbito, voltam à minha alma o movimento e o som – o movimento tumultuoso do coração e, em meus ouvidos, o som de suas batidas. Em seguida, uma pausa, em que tudo é vazio. Depois, de novo, o som, o movimento e o tato, como uma sensação vibrante que penetra em meu ser. Logo após, a simples consciência da minha existência, sem pensamento – estado que durou muito tempo. Depois, de maneira extremamente súbita, o pensamento, e um trêmulo terror – o esforço enorme para compreender o meu verdadeiro estado. Logo após, vivo desejo de mergulhar na insensibilidade. Depois, um brusco renascer da alma e um esforço bem sucedido para mover-me. E, então, a lembrança completa do que acontecera, dos juízes, das tapeçarias negras, da sentença, da fraqueza, do desmaio. Esquecimento completo de tudo o que acontecera – e que somente mais tarde, graças aos mais vivos esforços, consegui recordar vagamente.
Até então, não abrira ainda os olhos. Sentia que me achava deitado de costas, sem que estivesse atado. Estendi a mão e ela caiu pesadamente sobre alguma coisa úmida e dura. Deixei que ela lá ficasse durante muitos minutos, enquanto me esforçava por imaginar onde é que eu estava e o que é que poderia ter acontecido comigo. Desejava, mas não me atrevia a fazer uso dos olhos. Receava o primeiro olhar sobre as coisas que me cercavam. Não que me aterrorizasse contemplar coisas terríveis, mas tinha medo de que não houvesse nada para ver. Por fim, experimentando horrível desespero em meu coração, abri rapi-damente os olhos. Meus piores pensamentos foram, então, confirmados. Envolviam-me as trevas da noite eterna. Esforcei-me por respirar. A intensidade da escuridão parecia oprimir-me, asfixiar-me. O ar era intoleravelmente pesado. Continuei ainda imóvel, e esforcei-me por fazer uso da razão. Lembrei-me dos procedimentos inquisitoriais e, partindo daí, procurei deduzir qual a minha situação real.
A sentença fora proferida, e parecia-me que, desde então, transcorrera longo espaço de tempo. Não obstante, não imaginei um momento sequer que estivesse realmente morto. Tal suposição, pese o que lemos nos livros de fic-ção, é absolutamente incompatível com a existência real. Mas onde me encontrava e qual era o meu estado? Sabia que os condenados à morte pereciam, com freqüência, nos autos-de-fé – e um desses autos havia-se realizado na noite do dia em que eu fora julgado. Teria eu permanecido em meu calabouço, à espera do sacrifício seguinte, que não se realizaria senão dentro de muitos meses? Vi, imediatamente, que isso não poderia ser. As vítimas eram exigidas sem cessar. Além disso, meu calabouço, bem como as celas de todos os candenados, em Toledo, tinha piso de pedra e a luz não era inteiramente excluída.
De repente, uma idéia terrível acelerou violentamente o sangue em meu coração e, durante breve espaço, mergulhei de novo na insensibilidade. Ao recobrar os sentidos, pus-me logo de pé, a tremer convulsivamente. Alucinado, estendi os braços para o alto e em torno de mim, em todas as direções. Não senti nada. Não obstante, receava dar um passo, com medo de ver os meus movimentos impedidos pelos muros de um túmulo. O suor brotava-me de todos os poros e grossas gotas frias me salpicavam a testa. A angústia da incerteza tornou-se, por fim, insuportável e avancei com cautela, os braços estendidos, os olhos a saltar-me das órbitas, na esperança de descobrir algum tênue raio de luz. Dei muitos passos, mas, não obstante, tudo era treva e vácuo. Sentia a respiração mais livre. Parecia-me evidente que o meu destino não era, afinal de contas, o mais espantoso de todos.
Continuei a avançar cautelosamente e, enquanto isso, me vieram à memória mil vagos rumores dos horrores de Toledo. Sobre calabouços, contavam-se coisas estranhas – fábulas, como eu sempre as considerara; coisas, contudo, estranhas, e demasiado horríveis para que a gente as narrasse a não ser num sussurro. Acaso fora eu ali deixado para morrer de fome naquele subterrâneo mundo de trevas, ou
quem sabe um destino ainda mais terrível me aguardava? Conhecia demasiado bem o caráter de meus juízes para duvidar de que o resultado de tudo aquilo seria a morte, e uma morte mais amarga do que a habitual. Como seria ela e a hora de sua execução eram os únicos pensa-mentos que me ocupavam o espírito, causando-me angústia.
Minhas mãos estendidas encontraram, afinal, um obstáculo sólido. Era uma parede que parecia de pedra, muito lisa, úmida e fria. Segui junto a ela, caminhando com a cautelosa desconfiança que certas narrações antigas me haviam inspirado. Porém, essa operação não me proporcionava meio algum de averiguar as dimensões de meu calabouço; podia dar a volta e tornar ao ponto de partida sem perceber exatamente o lugar em que me encontrava, pois a parede me parecia perfeitamente uniforme. Por isso, procurei um canivete que tinha num dos bolsos quando fui levado ao tribunal, mas havia desaparecido. Minhas roupas tinham sido substituídas por uma vestimenta de sarja grosseira. A fim de identificar o ponto de partida, pensara em enfiar a lâmina em alguma minúscula fenda da parede. A dificuldade, apesar de tudo, não era insuperável, embora, em meio à desordem de meus pensamentos, me parecesse, a princípio, uma coisa insuperável. Rasguei uma tira da barra de minha roupa e coloquei-a ao comprido no chão. formando um ângulo reto com a parede. Percorrendo as palpadelas o caminho em torno de meu calabouço, ao terminar o circuito teria de encontrar o pedaço de fazenda. Foi, pelo menos, o que pensei; mas não levara em conta as dimensões do calabouço, nem a minha fraqueza. O chão era úmido e escorregadio. Cambaleante, dei alguns passos, quando, de repente, tropecei e caí. Meu grande cansaço fez com que permanecesse caído e, naquela posição, o sono não tardou em apoderar-se de mim.
Ao acordar e estender o braço, encontrei ao meu lado um pedaço de pão e um púcaro com água. Estava demasiado exausto para pensar em tais circunstâncias, e bebi e comi avidamente. Pouco depois, reiniciei minha viagem em torno do calabouço e, com muito esforço, consegui chegar ao pedaço de sarja. Até o momento em que caí, já havia contado cinqüenta e dois passos e, ao recomeçar a andar até chegar ao pedaço de pano, mais quarenta e oito. Portanto, havia ao todo cem passos e, supondo que dois deles fossem uma jarda, calculei em cerca de cinqüenta jardas a circunferência de meu calabouço. No entanto, deparara com numerosos ângulos na parede, e isso me impedia de conjeturar qual a forma da caverna, pois não havia dúvida alguma de que se tratava de uma caverna.
Tais pesquisas não tinham objetivo algum e, certamente, eu não alimentava nenhuma esperança; mas uma vaga curiosidade me Ievava a continuá-las. Deixando a parede, resolvi atravessar a área de minha prisão. A princípio, procedi com extrema cautela, pois o chão, embora aparentemente revestido de material sólido, era traiçoeiro, devido ao limo. Por fim, ganhei coragem e não hesitei em pisar com firmeza, procurando seguir cm linha tão reta quanto possível. Avancei, dessa maneira, uns dez ou doze passos, quando o que restava da barra de minhas vestes se emaranhou em minhas pernas. Pisei num pedaço da fazenda e caí violentamente de bruços.
Na confusão causada pela minha queda, não reparei imediatamente numa circunstância um tanto surpreendente, a qual, no entanto, decorridos alguns instantes, enquanto me encontrava ainda estirado, me chamou a atenção. Era que o meu queixo estava apoiado sobre o chão da prisão, mas os meus lábios e a parte superior de minha cabeça, embora me parecessem colocados numa posição menos elevada do que o queixo, não tocavam em nada. Por outro lado, minha testa parecia banhada por um vapor pegajoso, e um cheiro característico de cogumelos em decomposição me chegou às narinas. Estendi o braço para a frente e tive um estremecimento, ao verificar que caíra bem junto às bordas de um poço circular cuja circunferência, naturalmente, não me era possível verificar no momento. Apalpando os tijolos, pouco abaixo da boca do poço, consegui deslocar um pequeno fragmento e deixei-o cair no abismo. Durante alguns segundos, fiquei atento aos seus ruídos, enquanto, na queda, batia de encontro às paredes do poço; por fim, ouvi um mergulho surdo na água, seguido de ecos fortes. No mesmo momento, ouvi um som que se assemelhava a um abrir e fechar de porta. acima de minha cabeça, enquanto um débil raio de luz irrompeu subitamente através da escuridão e se extinguiu de pronto.
Percebi claramente a armadilha que me estava prepa-rada, e congratulei-me comigo mesmo pelo oportuno acidente que me fizera escapar de tal destino. Outro passo antes de minha queda, e o mundo jamais me veria de novo. E a morte de que escapara por pouco era daquelas que eu sempre considerara como fabulosas e frívolas nas narrações que diziam respeito à Inquisição. Para as vítimas de sua tirania, havia a escolha entre a morte com as suas angústias físicas imediatas e a morte com os seus espantosos horrores morais. Eu estava destinado a esta última. Devido aos longos sofrimentos, meus nervos estavam à flor da pele, a ponto de tremer ao som de minha própria voz, de modo que era, sob todos os aspectos, uma vítima adequada para a espécie de tortura que me aguardava.
Tremendo dos pés à cabeça, voltei, às apalpadelas, até a parede, resolvido antes a ali perecer do que a arrostar os terrores dos poços, que a minha imaginação agora pintava. em vários lugares do calabouço. Em outras condições de espírito, poderia ter tido a coragem de acabar de vez com a minha miséria, mergulhando num daqueles poços; mas eu era, então, o maior dos covardes. Tampouco podia esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a súbita extinção da vida não fazia parte dos planos de meus algozes.
A agitação em que se debatia o meu espírito fez-me permanecer acordado durante longas horas; contudo, acabei por adormecer de novo. Ao acordar, encontrei ao meu lado, como antes, um pão e um púcaro com água. Consumia-me uma sede abrasadora, e esvaziei o recipiente de um gole só. A água devia conter alguma droga, pois, mal acabara de beber, tornei-me irresistivelmente sonolento. Invadiu-me profundo sono – um sono como o da morte. Quanto tempo aquilo durou, certamente, não posso dizer; mas, quando tornei a abrir os olhos, os objetos em torno eram visíveis. Um forte clarão cor de enxofre, cuja origem não pude a princípio determinar, permitia-me ver a extensão e o aspecto da prisão.
Quanto ao seu tamanho, enganara-me completamente. A extensão das paredes, em toda a sua. volta, não passava. de vinte e cinco jardas. Durante alguns minutos, tal fato me causou um mundo de preocupações inúteis. Inúteis, de fato, pois o que poderia ser menos importante, nas circunstâncias em que me encontrava, do que as simples dimensões de minha cela? Mas minha alma se interessava vivamente por coisas insignificantes, e eu me empenhava em explicar a mim mesmo o erro cometido em meus cálculos. Por fim, a verdade fez-se-me subitamente clara. Em minha primeira tentativa de exploração, eu contara cinqüenta e dois passos até o momento em que caí; devia estar, então, a um ou dois passos do pedaço de sarja; na verdade, havia quase completado toda a volta do calabouço. Nessa altura, adormeci e, ao despertar, devo ter voltado sobre meus próprios passos – supondo, assim, que o circuito do calabouço era quase o dobro do que realmente era. A confusão de espírito em que me encontrava impediu-me de notar que começara a volta seguindo a parede pela esquerda, e que a terminara seguindo-a para a direita.
Enganara-me, também, quanto ao formato da cela. Ao seguir o meu caminho, deparara com muitos ângulos, o que me deu idéia de grande irregularidade, tão poderoso é o efeito da escuridão total sobre alguém que desperta do sono ou de um estado de torpor! Os ângulos não passavam de umas poucas reentrâncias, ou nichos, situadas em intervalos iguais. A forma geral da prisão era retangular. O que me parecera alvenaria, parecia-me, agora, ferro, ou algum outro metal, disposto em enormes pranchas, cujas suturas ou juntas produziam as depressões. Toda a superfície daquela construção metálica era revestida grosseiramente de vários emblemas horrorosos e repulsivos nascidos das superstições sepulcrais dos monges. Figuras de demônios de aspectos ameaçadores, com formas de esqueleto, bem como outras imagens ainda mais terríveis, enchiam e desfiguravam as paredes. Observei que os contornos de tais monstruosidades eram bastante nítidos, mas que as cores pareciam desbotadas e apagadas, como por efeito da umidade. Notei, então, que o piso era de pedra. Ao centro, abria-se o poço circular de cujas fauces eu escapara – mas era o único existente no calabouço.
Vi tudo isso confusamente e com muito esforço, pois minha condição física mudara bastante durante o sono. Estava agora estendido de costas numa espécie de andaime de madeira muito baixo, ao qual me achava fortemente atado por uma longa tira de couro. Esta dava muitas voltas em torno de meus membros e de meu corpo, deixando apenas livre a minha cabeça e o meu braço esquerdo, de modo a permitir que eu, com muito esforço, me servisse do aumento que se achava sobre um prato de barro, colocado no chão. Vi, horrorizado, que o púcaro havia sido retirado, pois uma sede intolerável me consumia. Pareceu-me que a intenção de meus verdugos era exasperar essa sede, já que o alimento que o prato continha consistia de carne muita salgada.
Levantei os olhos e examinei o teto de minha prisão. Tinha de nove a doze metros de altura e o material de sua construção assemelhava-se ao das paredes laterais. Chamou-me a atenção uma de suas figuras, bastante singular. Era a figura do Tempo, tal como é comumente representado, salvo que, em lugar da foice, segurava algo que me pareceu ser, ao primeiro olhar, um imenso pêndulo, como esses que vemos nos relógios antigos. Havia alguma coisa, porém, na aparência desse objeto, que me fez olhá-lo com mais atenção.
Enquanto a observava diretamente, olhando para cima, pois se achava colocada exatamente sobre minha cabeça, tive a impressão de que o pêndulo se movia. Um instante depois, vi que minha impressão se confirmava. Seu oscilar era curto e, por conseguinte, lento. Observei-o, durante alguns minutos, com certo receio, mas, principalmente, com espanto. Cansado, por fim, de observar o seu monótono movimento, voltei o olhar para outros objetos existentes na cela.
Um ligeiro ruído atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi que enormes ratos o atravessavam. Tinham saído do poço, que ficava a direita. bem diante de meus olhos. Enquanto os olhava, saíam do poço em grande número, apressadamente, com olhos vorazes, atraídos pelo cheiro da carne. Foi preciso muito esforço e atenção de minha parte para afugentá-los.
Talvez houvesse transcorrido meia hora, ou mesmo uma hora – pois não me era possível perceber bem a passa-gem do tempo -, quando levantei de novo os olhos para o teto. O que então vi me deixou atônito, perplexo. O oscilar do pêndulo havia aumentado muito, chegando quase a uma jarda. Como conseqüência natural, sua velocidade era também muito maior. Mas o que me perturbou, principal-mente, foi a idéia de que havia, imperceptivelmente, descido. Observei, então – tomado de um horror que bem se pode imaginar -, que a sua extremidade inferior era formada de uma lua crescente feita de aço brilhante, de cerca de um pé de comprimento de ponta a ponta. As pontas estavam voltadas pura cima e o fio inferior era, evidentemente, afiado como uma navalha. Também como uma navalha, parecia pesada e maciça, alargando-se, desde o fio, numa estrutura larga e sólida. Presa a cela havia um grosso cano de cobre, e tudo isso assobiava, ao mover-se no ar.
Já não me era possível alimentar qualquer dúvida quanto à sorte que me reservara o terrível engenho monacal de torturas. Os agentes da Inquisição tinham conhecimento de que eu descobrira o poço – o poço cujos horrores haviam sido destinados a um herege tão temerário quanto eu -, o poço, imagem do inferno, considerado como a Última Tule de todos os seus castigos. Um simples acaso me impedira de cair no poço, e eu sabia que a surpresa, ou uma armadilha que levasse ao suplício constituíam uma parte importante de tudo o que havia de grotesco naqueles calabouços de morte. Ao que parecia, tendo fracassado a minha queda no poço, não fazia parte do plano demoníaco o meu lançamento no abismo e, assim, não havendo outra alternativa, aguardava-me uma forma mais suave de destruição. Mais suave! Em minha angústia, esbocei um sorriso ao pensar no emprego dessas palavras.
Para que falar das longas, longas horas de horror mais do que mortal, durante as quais contei as rápidas oscilações do aço? Polegada a polegada, linha a linha, descia aos poucos, de um modo só perceptível a intervalos que para mim pareciam séculos. E cada vez descia mais, descia mais!…
Passaram-se dias, talvez muitos dias, antes que chegasse a oscilar tão perto de mim a ponto de me ser possível sentir o ar acre que deslocava. Penetrava-me as narinas o cheiro do aço afiado. Rezei – cansando o céu com as minhas preces – para que a sua descida fosse mais rápida. Tomado de frenética loucura, esforcei-me para erguer o corpo e ir ao encontro daquela espantosa e oscilante cimitarra. Depois, de repente, apoderou-se de mim uma grande calma e permaneci sorrindo diante daquela morte cintilante, como uma criança diante de um brinquedo raro.
Seguiu-se outro intervalo de completa insensibilidade -um intervalo muito curto, pois, ao voltar de novo à vida, não me pareceu que o pêndulo houvesse descido de maneira perceptível. Mas é possível que haja decorrido muito tempo; sabia que existiam seres infernais que tomavam nota de meus desfalecimentos e podiam deter, à vontade, o movimento do pêndulo. Ao voltar a mim, senti um mal-estar é uma fraqueza indescritíveis, como se estivesse a morrer de inanição. Mesmo entre todas as angústias por que esta-va passando, a natureza humana ansiava por alimento. Com penoso esforço, estendi o braço esquerdo tanto quanto me permitiam as ataduras e apanhei um resto de comida que conseguira evitar que os ratos comessem. Ao levar um bocado à boca, passou-me pelo espírito um vago pensamento de alegria… de esperança. Não obstante, .que é que tinha com a ver com a esperança? Era, como digo, um pensamento vago – desses que ocorrem a todos com freqüência, mas que não se completam. Mas senti que era de alegria, de esperança. Como senti, também, que se extinguira antes de formar-se. Esforcei-me em vão por completá-lo… por reconquistá-lo. Meus longos sofrimentos haviam quase aniquilado todas as Faculdades de meu espírito. Eu era um imbecil, um idiota.
A oscilação do pêndulo se processava num plano que tormava um ângulo reto com o meu corpo. Vi que a lâmina fora colocada de modo a atravessar-me a região do coração. Rasgaria a ininha roupa, voltaria e repetiria a operação… de novo, de novo. Apesar da grande extensâo do espaço percorrido – uns trinta pés, mais ou menos – e da sibilante energia de sua oscilação, suficiente para partir ao meio aquelas próprias paredes de ferro, tudo o que podia fazer, durante vários minutos, seria apenas rasgar as minhas roupas. E, ao pensar nisso, detive-me. Não ousava ir além de tal reflexão. Insisti sobre ela com toda atenção, como se com essa insistência pudesse parar ali a descida da lâmina. Comecei a pensar no som que produziria ao passar pelas minhas róupas, bem como na estranha e arrepiante sensação que o rasgar de uma fazenda produz sobre os nervos. Pensei em todas essas coisas fazendo os dentes rangerem, de tão contraídos.
Descia… cada vez descia mais a lâmina. Sentia um prazer frenético ao comparar sua velocidade de cima a baixo com a sua velocidade lateral. Para a direita… para a esquerda… num amplo oscilar… com o grito agudo de uma alma penada; para o meu coração, com o passo furtivo de um tigre! Eu ora ria, ora uivava, quando esta ou aquela idéia se tornava predominante.
Sempre para baixo… certa e inevitavelmente! Movia-se, agora, a três polegadas do meu peito! Eu lutava violentamente, furiosamente. para livrar o braço esquerdo. Este estava livre apenas desde o cotovelo até a mão. Podia mover a mão, com grande esforço, apenas desde o prato, que haviam colocado ao meu lado, até a boca. Nada mais. Se houvesse podido romper as ligaduras acima do cotovelo, teria apanhado o pêndulo e tentado detê-lo. Mas isso seria o mesmo que tentar deter uma avalancha!
Sempre mais baixo, incessantemente, inevitavelmente mais baixo! Arquejava e me debatia a cada vibração. Encolhia-me convulsivamente a cada oscilação. Meus olhos seguiam as subidas e descidas da lâmina com a ansiedade do mais completo desespero; fechavam-se espasmodicamente a cada descida, como se a morte houvesse sido um alívio… oh, que alívio indizível! Não obstante, todos os meus nervos tremiam. à idéia de que bastaria que a máquina descesse um pouco mais para que aquele machado afiado e reluzente se precipitasse sobre o meu peito. Era a esperança que fazia com que meus nervos estremecessem, com que todo o meu corpo se encolhesse. Era a esperança – a esperança que triunfa mesmo sobre o suplício -, a que sussurrava aos ouvidos dos condenados à morte, mesmo nos calabouços da Inquisição.
Vi que mais umas dez ou doze oscilações poriam o aço em contato imediato com as minhas roupas e, com essa observação, invadiu-me o espírito toda a calma condensada e viva do desespero. Pela primeira vez durante muitas horas – ou, talvez dias – consegui pensar. Ocorreu-me, então, que a tira ou correia que me envolvia o corpo era inteiriça. Não estava amarrada por meio de cordas isoladas.
O primeiro golpe da lâmina em forma. de meia lua sobre qualquer lugar da correia a desataria, de modo a permitir que minha mão a desenrolasse de meu corpo. Mas como era terrível, nesse caso, a sua proximidade. O resultado do mais leve movimento, de minha parte, seria mortal! Por outro lado, acaso os sequazes do verdugo não teriam previsto e impedido tal possibilidade? E seria provável que a correia que me atava atravessasse o meu peito justamente no lugar em. que o pêndulo passaria? Temendo ver frustrada essa minha fraca e, ao que parecia, última esperança, levantei a cabeça o bastante par ver bem o meu peito. A correia, envolvia-me os membros e o corpo fortemente em todas as direções, menos no lugar em que deveria passar a lâmina assassina.
Mal deixei cair a cabeça em sua posição anterior, quando senti brilhar em meu espírito algo que só poderia descrever proximadamente, dizendo que era como que a metade não formada da idéia de liberdade a que aludi anteriormente, e da qual apenas uma parte flutuou vaga-mente em meu espírito quando levei o alimento aos meus lábios febris. Agora, todo o pensamento estava ali presente – débil, quase insensato, quase indefinido -, mas, de qualquer maneira, completo. Procurei imediatamente, com toda a energia nervosa do desespero, pô-lo em execução.
Havia várias horas, um número enorme de ratos se agitava junto do catre em que me achava estendido. Eram temerários, ousados, vorazes; fitavam sobre mim os olhos vermelhos, como se esperassem apenas minha imobilidade para fazer-me sua presa. “A que espécie de alimento”, pensei, “estão eles habituados no poço?” Haviam devorado, apesar de todos os meus esforços para o impedir, quase tudo o alimento que se encontrava no prato, salvo uma pequena parte. Minha mão se acostumara a um movimento oscilatório sobre o prato e, no fim, a uniformidade inconsciente de tal movimento deixou de produzir efeito. Em sua veracidade, cravavam freqüentemente em meus dedos os dentes agudos. Com o resto da carne oleosa e picante que ainda sobrava. esfreguei fortemente, até o ponto em que podia alcançá-la, a correia com que me haviam atado. Depois, erguendo a mão do chão, permaneci imóvel, quase sem respirar.
A princípio, os vorazes animais ficaram surpresos c aterrorizados com a mudança verificada – com a cessação de qualquer movimento. Mas isso apenas durante um momento. Não fora em vão que eu contara com a sua voracidade. Vendo que eu permanecia imóvel, dois ou três dos mais ousados soltaram sobre o catre e puseram-se a cheirar a correia. Dir-se-ia que isso foi o sinal para a investida geral. Vindos da parede, arremeteram em novos bandos. Agarraram-se ao estrado, galgaram-no e pularam. as centenas sobre o meu corpo. O movimento rítmico do pêndulo não os perturbava de maneira alguma. Evitando seus golpes, atiraram-se à correia besuntada. Apertavam-se, amontoavam-se sobre mim. Contorciam-se sobre meu pescoço; seus focinhos, frios. procuravam meus lábios. Sentia-me quase sufocado sob o seu peso. Um asco espantoso, para o qual não existe nome, enchia-me o peito e gelava-me, com pegajosa umidade, o coração. Mais um minuto, e percebia que a operação estaria terminada. Sentia claramente que a correia afrouxava. Sabia que, em mais de um lugar, já devia estar completamente partida. Com uma determinação sobre-humana continuei imóvel.
Não errei em meus cálculos; todos esses sofrimentos não foram em vão. Senti, afinal, que estava livre. A correia pendia, em pedaços, de meu corpo. Mas o movimento do pêndulo já se realizava sobre o meu peito. Tanto a sarja da minha roupa, como a camisa que vestia já haviam sido cortadas. O pêndulo oscilou ainda por duas vezes, e uma dor aguda me penetrou todos os nervos. Mas chegara o momento da salvação. A um gesto de minha mão, meus libertadores fugiram tumultuosamente. Com um movimento decidido, mas cauteloso, deslizei encolhido, lentamente, para o lado, livrando-me das correias e da lâmina da cimi-tarra. Pelo menos naquele momento, estava livre.
Livre! E nas garras da Inquisição! Mal havia escapado daquele meu leito de horror e dado uns passos pelo piso de pedra da prisão, quando cessou o movimento da má-quina infernal e eu a vi subir, como que atraída por alguma força invisível, para o teto. Aquela foi uma lição que guardei desesperadamente no coração. Não havia dúvida de que os meus menores gestos eram observados. Livre! Escapara por pouco à morte numa determinada forma de agonia, apenas para ser entregue a uma outra, pior do que a morte. Com este pensamento, volvi os olhos, nervosamente, para as paredes de ferro que me cercavam. Algo estranho – uma mudança que, a princípio, não pude apreciar claramente – havia ocorrido, evidentemente, em minha cela. Durante muitos minutos de trêmula abstração, perdi-me em conjeturas vãs e incoerentes. Pela primeira vez percebi a origem da luz sulfurosa que alumiava a cela. Procedia de uma fenda, de cerca de meia polegada de largura, que se estendia em torno do calabouço, junto a base das paredes, que pareciam, assim, e, na verdade estavam, completamente separadas do solo. Procurei, inutilmente, olhar através dessa abertura.
Ao levantar-me, depois dessa tentativa, o mistério da modificação verificada tornou-se-me, subitamente, claro. Já observara que, embora os contornos dos desenhos das paredes fossem bastante nítidos, suas cores, não obstante, pareciam apagadas e indefinidas. Essas cores, agora, haviam adquirido, e estavam ainda adquirindo, um brilho intenso e surpreendente, que dava às imagens fantásticas e diabólicas um aspecto que teria arrepiado nervos mais firmes do que os meus. Olhos demoníacos, de uma vivacidade sinistra e feroz, cravavam-se em mim de todos os lados, de lugares onde antes nenhum deles era visível, com um brilho ameaçador que eu, em vão, procurei considerar como irreal.
Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor de ferros em brasa! Um cheiro sufocante invadia a prisão! Um brilho cada vez mais profundo se fixava nos olhos cravados em minha agonia! Um vermelho mais vivo estendia-se sobre aquelas pinturas horrorosas e sangrentas. Eu arquejava. Respirava com dificuldade. Não poderia haver dúvida quanto à intenção de meus verdugos, os mais implacáveis, os mais demoníacos de todos os ho-mens! Afastei-me do metal incandescente,colocando-me ao centro da cela. Ante a perspectiva da morte pelo fogo,que me aguardava, a idéia da frescura do poço chegou à minha alma como um bálsamo. Precipitei-me para as suas bordas mortais. Lancei o olhar para o fundo. O resplendor da abóbada iluminava as suas cavidades mais profundas. Não obstante, durante um minuto de desvario, meu espírito se recusou a compreender o significado daquilo que eu via. Por fim, aquilo penetrou, à força, em minha alma, gravando-se a fogo em minha trêmula razão. Oh, indescritível! Oh, horror dos horrores! Com um grito, afastei-me do poço e afundei o rosto nas mãos, a soluçar amargamente.
O calor aumentava rapidamente e, mais uma vez, olhei para cima, sentindo um calafrio. Operara-se uma grande mudança na cela – e, dessa vez, a mudança era, evidentemente, de forma. Como acontecera antes, procurei inutilmente apreciar ou compreender o que ocorria. Mas não me deixaram muito tempo em dúvida. A vingança da Inquisição se exacerbara por eu a haver frustrado por duas vezes – e não mais permitiria que zombasse dela! A cela, antes, era quadrada. Notava, agora, que dois de seus ângulos de ferro eram agudos, sendo os dois outros, por conseguinte, obtusos. Com um ruído surdo, gemente, aumentava rapidamente o terrível contraste. Num instante, a cela adquirira a forma de um losango. Mas a modificação não parou aí – nem eu esperava ou desejava que parasse. Poderia haver apertado as paredes incandescentes de encontro ao peito, como se fossem uma vestimenta de eterna paz. “A morte”, disse de mim para comigo. “Qualquer morte, menos a do poço!” Insensato! Como não pude compreender que era para o poço que o ferro em brasa me conduzia? Resistiria eu ao seu calor? E, mesmo que resistisse, suporturia sua pressão? E cada vez o losango se aproximava mais, com uma rapidez que não me deixava tempo para pensar. Seu centro e, naturalmente, a sua parte mais larga chegaram até bem junto do abismo aberto. Recuei, mas as paredes, que avançavam, me empurravam, irresistivelmente, para a frente. Por fim, já não existia, para o meu corpo chamuscado e contorcido, senão um exíguo lugar para firmar os pés, no solo da prisão. Deixei de lutar, mas a angústia de minha alma se extravasou em forte e prolongado grito de desespero. Senti que vacilava à boca do poço, e desviei os olhos… Mas ouvi, então, um ruído confuso de vozes humanas! O som vibrante de muitas trombetas! E um rugido poderoso, como de mil trovões, atroou os ares! As paredes de fogo recuaram precipitadamente! Um braço estendido agarrou o meu, quando eu, já quase desfalecido, caía no abismo. Era o braço do General Lassalle. O exército francês entrara em Toledo. A Inquisição estava nas mãos de seus inimigos.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro